domingo, 7 de dezembro de 2008

121ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 10/12/2008

Lya Luft Do horror brota a grandeza "Na hora da tragédia, a solidariedade – que só floresce na dor – vem com força. Em algum lugar, alguém, um desconhecido que jamais iremos ver, abre os braços e diz: irmão. Essa era a palavra que, só ela, poderia nos salvar. E foi pronunciada" Uma quadrilha de dez a quinze terroristas, meninada em torno de 20 anos, toma de assalto a lendária Bombaim, na Índia, hoje Mumbai, e sai matando a torto e a direito. Simples assim. Com armas pesadas e moderníssimas, o bando mata sorrindo, segundo testemunhas. Entra em lugares apinhados e famosos, também na cozinha de um hotel de muitas estrelas. Um grupo de jovens chefs com animação e capricho prepara jantares para hóspedes e outros clientes. Os meninos terroristas entram, sorriem e fuzilam todo o grupo. Saem pelo imenso hotel matando, e, depois de algumas horas (foram dias inteiros!!!), há lugares onde o assoalho é escorregadio de tanto sangue. Até hoje não sei se tudo ficou esclarecido, pois as notícias eram vagas e confusas, e a matança dos inocentes, vasta e desordenada para quem recebia as notícias, parece que foi muito bem preparada: havia meses a gangue assassina treinava, preparava, sondava terreno, ia se instalando nos próprios hotéis escolhidos, levando armamentos e preparando salas de comando com sofisticados recursos. Enquanto isso, ali junto, pais de família, crianças, mulheres grávidas, simples empregados e altos funcionários, da modesta faxineira ao mais bem-posto milionário, viviam sua vidinha ou vidona, sem imaginar que sua morte espreitava com um belo sorriso num rosto de garotão. A vida tem dessas coisas, não temos lá grande controle sobre ela, corremos muitas vezes como animais confusos para o matadouro. Ilustração Atômica Studio Há mais tragédias na lista do momento, como aqui ao lado, na bela, ensolarada, mágica Santa Catarina, onde meus filhos quando meninos iam surfar e eu mesma já experimentei momentos de beleza e serenidade, de pura alegria. Agora, nesse suposto paraíso, o tsunami – relatava uma jovem vitimada pelo horror – não era água e espuma, mas lama, barro, pedras enormes, arrastando casas, árvores, corpos de gente e de bichos. Pessoas foram enterradas no quintal ou na hortinha, pois nada mais sobrava, nem um metro de terra firme. Alguns desaparecidos jamais serão achados. Povoados não poderão ser reconstruídos, pois o terreno simplesmente sumiu. Famílias para sempre destroçadas, para todo o sempre, sem sentido, sem aviso, sem entender nada. Não há o que dizer. Mas não é apenas isso a nossa vida: é também a revelação da grandeza humana, uma onda incessante de generosidade e compaixão. Pessoas simples de Santa Catarina doam o essencial; acolhem em sua casa vizinhos ou desconhecidos que tudo perderam e, em boa parte, jamais vão recuperar. Gente modesta do país inteiro se mobiliza e as estradas (muitas nem existem mais) seriam insuficientes para esse tráfego de humanidade. Empregadas domésticas dão um de seus três pares de sapatos usados; crianças dão dois de seus cinco brinquedos; famílias doam um colchão e dormem apertadas; gente manda uma lata de leite em pó e bota mais água na caneca de seus filhos. Isso tem de valer mais do que todo o frio horror da natureza, descontrolada em parte pela nossa irresponsabilidade, ganância e despreparo, e pela fatalidade que nos ronda. Tem de valer mais do que a perversão dos terroristas que mataram sorrindo, mais até do que a desgraça de milhares de pessoas que nada tinham a ver com isso, aqui e no outro lado do mundo: o rabino idealista com sua mulher, os garçons e camareiras, os casais em lua-de-mel, os velhos em sua primeira viagem juntos, os empresários ocupados e os funcionários esforçados, os agricultores e professoras, os namorados, as grávidas, os bebezinhos. Na hora da tragédia, aqui e lá, a solidariedade – que só floresce na dor – vem com força. Estamos na sombra, estamos no abismo, doentes, sofridos, perdidos, órfãos e enlutados, sem ter nem para onde voltar – mas, em algum lugar, alguém, um desconhecido que jamais iremos ver, ou o vizinho próximo, no fim desse horrendo túnel, abre os braços e diz: irmão. Essa era a palavra que, só ela, poderia nos salvar. E foi pronunciada. Lya Luft é escritora

Nenhum comentário: