sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

2ª Crônica de Lya Luft para Revista Veja -28/04/2004

Ponto de vista: Lya Luft Uma afirmação dura "Cada vez que um de nós consome uma droga qualquer, está botando no cano de uma arma a bala – perdida ou não – que vai matar uma criança, uma mãe de família, um trabalhador" Porque somos imperfeitos podemos melhorar. A perfeição seria o tédio, e desse, sim, eu poderia morrer. Bocejar até o final, contemplando a ordem celeste, os anjos rechonchudos naquela disciplina: ninguém dando um escorregão, ninguém botando a língua para São Pedro. Quando era criança, eu morria de medo dessa ordem impenetrável na qual não haveria lugar para mim. Ilustração Ale Setti Outro dia conheci um grupo de homens e mulheres dos mais variados níveis culturais e sociais, que fizeram da imperfeição a sua razão de vitória. Das pedras que tiveram de quebrar, construíram seu caminho, alguns até seu castelo. Gente que se livrou – ou ainda luta para se libertar – da dependência química. Senti-me privilegiada por estar com eles, mais para aprender do que para falar. Percebi novamente quanto nós, que não vivemos esse drama, tendemos a nos portar como eternos adolescentes, facilmente preconceituosos, rápidos em nosso julgamento e superficiais na nossa compreensão. E quanto disfarçamos nossos próprios medos em lugar de enfrentá-los como o fazem esses anônimos guerreiros. Fingimos ser superiores, batendo grandes papos sobre dinheiro, futebol, política. Não estamos nem aí. Botamos tapa-olhos para não enxergar o que se passa, vestimos máscaras para que a verdade não nos cuspa na cara e nos defendemos do rumor que nos ameaça botando fones de ouvido enquanto caminhamos na esteira para ficar em forma. Mas, individualmente, temos medo e solidão. Como país, estamos acuados. A violência é generalizada, o narcotráfico nos deixa desprotegidos, mais pessoas foram assassinadas por aqui do que nas guerras ao redor do mundo nos últimos anos. Estão cada vez mais altos os muros do medo e do silêncio. A gente se lamenta, dá palpites e entrevistas, organiza seminários. Resultado? Parece que nenhum. Talvez seja mesmo melhor não saber a quem a situação interessa, nem por que sugestões e explicações aparecem e desaparecem das páginas de jornal e telas de televisão. Quando nada se pode fazer, só nos resta a resignação. Mas sou da tribo (não tão pequena) dos que não se conformam. Não acredito em revolução, a não ser pessoal. Em algumas coisas sou antipaticamente individualista. Não sou boazinha, e quem julga meus livros bonzinhos está lendo com os óculos da sua própria burrice. Mas acho que, quando o complicado não resolve, pode-se tentar o mais simples. Às vezes ser simples é ser original. Cada vez que, seja por trágica dependência, seja por aquilo que minha mãe chamava "fazer-se de interessante", um de nós consome uma droga qualquer (mesmo o cigarrinho de maconha dividido com a turma), está botando no cano de uma arma a bala – perdida ou não – que vai matar uma criança, uma mãe de família, um trabalhador. É uma afirmação dura? É. A vida pode ser muito dura e, o que é pior, muitas vezes por responsabilidade nossa. Num jantar, há muitos anos, um conhecido disse que costumava fazer-se de pai amigão, fumando maconha com os filhos adolescentes. Um dos meninos viria a sofrer gravíssimos problemas de dependência pelo resto da vida. O pai era culpado? Não creio. A vida não é tão simples, nem eu sou tão moralista. Mas talvez a gente brinque demais na beira do abismo. Voltando ao começo deste artigo: aquelas pessoas que lutavam contra a dependência química renovaram minha convicção de que, no que se refere à questão da violência ligada ao narcotráfico, sermos os eternos queixosos que não fazem nada é outra forma de violência – perigosa porque sutil. É colaborar com os que vão nos atingir no coração: diretamente com uma bala, ou com a morte praticamente anunciada de alguém que amamos.

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