sábado, 6 de dezembro de 2008

30ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 18/05/2005

Ponto de vista: Lya Luft Índios em Paris "Os europeus se deliciam com o diferente, o aventuresco, o que pensam ser o 'brasileiro'. Que tédio. Culpa nossa, que exportamos demais caipirinha, mulatas, Carnaval" No exterior, sempre a velha surpresa: como se sabe pouco sobre nós. Como nos exportamos mal (isso quando não nos portamos mal). De nós sabem e querem o chamado exótico. Um livro de uma brasileira que não fale de Carnaval, favela, floresta e bichos parece um corpo estranho. "Escritora brasileira?", disseram-me certa vez. "Mas no Brasil existem editoras?" Nem todo mundo pensa assim, claro, tem gente mais informada, mais antenada. Mas ainda ocorre. Paris belíssima, a palavra clichê é também a inevitável: um charme. Vida difícil, vida extraordinariamente cara mesmo para parisienses: em qualquer bistrô simples, um café e um chá, sem acompanhamento, somam 8 euros. Pensar em reais nos paralisaria, então finjo que vivo em euros o tempo todo e raspo o fundo da bolsa. Ilustração Atômica Stúdio Porém se sente na Europa – onde eu não quereria morar, pois, apesar do nome e da cara, sou brasileira de carteirinha – a presença magnífica da cultura e da história. A dois passos de tudo, para qualquer lado, as melhores exposições de arte. Ou simplesmente passeios a pé à margem do Sena, por jardins que nesta época do ano, primavera plena, são indescritíveis. Bem-cuidados, muitos cercados e quase todos proibindo cães mesmo com coleira, mas sobretudo luxuosos com suas flores plantadas com atenção para os matizes. Por que achamos que no trópico é que estão as flores mais bonitas? Talvez mais exuberantes, sim. Mas, depois do frio, do gelo e da neve, a natureza rebrota com um esplendor emocionante. Algumas entrevistas, muita gentileza (o mito do francês, sobretudo parisiense, arrogante e seco caiu por terra. Turismo é necessário e bem-vindo em toda parte). Incrível o trabalho feito por mulheres profissionais com relação ao livro e à cultura, coisa que também ocorre por aqui, e seu esforço por difundir lá um Brasil culto. No entanto, algumas perguntas esquisitas, como sobre a influência do índio em nossa vida, trabalho, arte – até na minha literatura. Levo um tempo para pensar na resposta, o interlocutor intrigado. Tenho de ser honesta, sempre o caminho mais fácil: a maioria imensa dos brasileiros nunca viu um índio. Restaram poucos, dizimados por doenças, pobreza, bebida e abandono. Existem meritórias campanhas para que sejam protegidos, preservados ou integrados, mas muito há por fazer. Devemos nos envergonhar disso. Em Paris, num belo palácio, há uma exposição sobre os índios, levaram-se alguns para lá, houve danças e pajelanças. Novamente os europeus se deliciam com o diferente, o aventuresco, o que pensam ser o "brasileiro". Nossa literatura urbana quase não se contempla. Nossa realidade industrial, cultural, universitária, sociológica aparentemente pouco interessa. O europeu ainda quer o diferente e o estranho. Que tédio. Culpa nossa, que exportamos demais caipirinha, mulatas, Carnaval, favela e futebol: tudo ótimo, desde que não seja tudo. Voltei com a sensação, entre muitas, de que os verdadeiros artistas viviam em grande simplicidade, mesmo que morassem num castelo como o de Picasso em Vauvenargues, junto de Aix-en-Provence, onde comemos num boteco, do outro lado da rua, atendidos pelo casal que servia ao pintor e sua mulher Jaqueline. A mesma impressão nos ficou andando pelas trilhas de Cézanne e visitando seu comovente ateliê. Gente assim não precisa de "status": tem mais o que fazer. Depois da ridícula (mas perigosa, prestem atenção nas coisas que à primeira vista parecem tolas, mas revelam intenções funestas) cartilha do politicamente correto, que, como outras manobras, foi de momento suspensa, eu certamente estou usando uma porção de palavras "malditas". Isso me alegra: jamais pertencer à manada dos intelectualmente dominados ou politicamente manipulados, coisa que meu velho pai me ensinou. Lya Luft é escritora

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