sábado, 6 de dezembro de 2008

47ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja"em 08/02/2006

Ponto de vista: Lya Luft O gato comeu "Cadê a vergonha, a dignidade e a coragem, devoradas por esse monstruoso gato que agora lambe os bigodes e olha com risinho sarcástico o mapa do Brasil político, onde corremos feito ratos?" Ando colecionando informações sobre coisas importantes que algum gato comeu em 2005, deixando um vazio em 2006. Porque certamente um gato enorme, voraz e sombrio, tirou da bandeja dos acontecimentos que poderiam melhorar o país (e a nossa vida) algumas guloseimas éticas e morais, deu fim a interrogações sem resposta: Ilustração Atômica Studio Cadê o ânimo inicial de quando começaram a ser desmascaradas falcatruas respeitáveis envolvendo governo e política, e a gente acreditava que as coisas finalmente iam ser postas em seus lugares, e começariam a mudar? Cadê fonte e destino especificados da fortuna inimaginável manobrada por um tesoureiro de partido, cadê o nome da pessoa que lhe deu autoridade para administrar tanta e tão suspeita grana, e continuar sem punição real? Cadê o responsável, singular ou plural, pela fortuna muito maior que rola nas mãos de um publicitário, calculada em bilhões que poderiam comprar escolas, construir ou melhorar hospitais, salvar milhares de vidas, tornar menos miserável este pobre país? Cadê a deposição dos cargos, a prisão, a punição superexemplar dos mais que culpados (os que se conseguiu encontrar) dessa lambança toda, que seria de fazer rir, se não fosse trágica? Cadê aquele que ministrou o elixir do esquecimento a autoridades que não podiam se eximir de saber tudinho? Cadê o impedimento de quem nega às CPIs informações valiosíssimas, faz sumir documentos, promove atrasos inexplicáveis e provoca insuportáveis confusões – para que tudo apareça, menos a verdade? Cadê o apoio ao esforço gigantesco dos membros de CPIs que acreditam em justiça e honradez, e ainda insistem em descobrir as manobras, procurar os criminosos, enfrentar as barras que não devem estar sendo muito leves? Cadê a punição de quem se introduziu em entidades vetustas e tribunais imaculados para que, não mais que de repente, notássemos que o governo e/ou o PT estavam sendo favorecidos, e não a justiça nem a verdade? Cadê a fábrica de caras-de-pau que preservam (só para os burros ou ladinos, claro) as aparências de que as coisas funcionam – tudo engrenado, lubrificado, dentro dos eixos e com os parafusos apertados como nunca antes –, as autoridades de nada sabendo neste país delirante? Cadê o nome de quem nos roubou a certeza de que enfim a casa seria faxinada e habitada sem medo daquilo que mostra rabo e patas nas frestas desse imenso barraco em que se transformou o país? Cadê a vergonha, a dignidade e a coragem, devoradas por esse monstruoso gato que agora lambe os bigodes e olha com risinho sarcástico o mapa do Brasil político, onde corremos feito ratos acovardados ou pouco inteligentes? Notas sobre novas descobertas, muitas provas que os cínicos dizem ignorar e os mal-intencionados desprezam, ainda espocam aqui e ali, fazendo com que a gente não desista de todo enquanto os mais bobos batem palmas. Mas vamos deixar de lado tanta pergunta, ou seremos os empata-alegrias, os chatos de galocha. Sejamos simpáticos otimistas: mesmo que aqui dentro as coisas cheirem mal, lá fora o Brasil vai mostrar o que mais sabe, futebol. As eleições vão reavivar a malandragem e animar ainda mais a demagogia, explorando a nossa credulidade e embotando a nossa mente. Poucos vão continuar reclamando das mutretas e indignidades, tentando arrancar as verdades impensáveis de debaixo dos tapetes públicos e privados. Estamos em pleno futuro: viva o Carnaval que se aproxima e ajuda a esquecer, viva o futebol que será brilhante e renovará nosso entusiasmo pela mãe-pátria, e viva, não esqueçam, o gato que comeu nossas preocupações, bebeu nossa passageira ira, e hoje se diverte com nossa covarde acomodação e nossa tão fraca memória. Talvez seja mesmo melhor assim. Lya Luft é escritora

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