domingo, 7 de dezembro de 2008

54ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 17/05/2006

Ponto de vista: Lya Luft A República dos Alucinados "Nossa derrocada será inimaginável, se não abrirmos urgentemente os olhos para ver, os ouvidos para escutar e as mãos para trabalhar em nosso favor" Quando esta coluna sair, estarei ainda por alguns dias na Itália, de onde a escrevo, ligada a meu país pela internet e pelos telefonemas de amigos e filhos. De outra maneira eu de nada saberia, pois a Europa nos desconhece quase totalmente. Aceitei o chamado de minha editora italiana, a Bompiani, para falar no lançamento de meu livro Perdas & Ganhos na Feira de Turim. Minha colaboração mínima para que se tenha aos poucos uma visão mais real do Brasil, não apenas os simpáticos Carnaval, violão, caipirinha e futebol. Cansei de estar no exterior e me indagarem se realmente há editoras no Brasil, e universidades, e o resto. Há coisas das quais não falo porque me angustiam e envergonham, entre tantas que me orgulham. Para mim meu país é como filho: nele só quero que vejam qualidades. Não quero ter de dizer, por exemplo, que viramos uma terra de alucinados, porque nos dizem algumas autoridades que tudo é mania de perseguição, é coisa inventada. Atômica Studio Assim, enquanto a saúde pública apodrece e pessoas ainda morrem nas filas do INSS ou em corredores de hospitais cujo corpo de médicos e enfermeiras está esgotado de trabalhar, alguém com autoridade vem nos dizer que estamos chegando quase à perfeição em matéria de saúde pública. Diante disso, só posso crer que sofremos das faculdades mentais, nós que vemos e vivemos o contrário. Alguém disse também, no mesmo terreno, que o problema são os velhinhos, os aposentados, que pegaram a péssima mania de correr para as filas de madrugada. Se chegassem em horário normal e mais saudável, 7 ou 8 horas, teriam pronto atendimento. Mais um atestado de que nós, os comuns brasileiros, andamos nos alucinando. Na nossa doença mental inventamos também que as escolas estão em condições péssimas, o ensino elementar caindo pelas tabelas, o médio nem se fala, e a universidade desmoronando. Nem comento mais o supérfluo papel higiênico nos banheiros de professores (de alunos, nem falar), mas penso nas bibliotecas precárias, nos laboratórios antiquados, quando não destruídos por fanáticos amantes do atraso e da devastação. Professores pouco estimulados e pessimamente pagos, currículos absurdos, prédios em condições físicas inaceitáveis... e, de modo geral, a queda do nível de ensino. Alucinou-se minha amiga há duas semanas, quando, levando uma criança pela mão, foi abordada por um jovem drogado que a ameaçou e lhe arranhou a cara em plena manhã de movimento. Teve sorte minha amiga: não foi esfaqueada nem estuprada. Voltou para casa, pensando em como explicar tudo a uma criança pequena. E comentamos juntas que estímulo, que modelo teria aquele jovem entre nossos homens públicos – nem todos, os dignos eu respeito cada dia mais – diante dos fatos que vêm acontecendo conosco. Para que ser saudável e honesto, trabalhar, sustentar-se, quem sabe ajudar a família? Os bilhões roubados e desaparecidos nas homéricas falcatruas que tentam esconder ainda poderiam ter salvo da desgraça muitos milhares de jovens como aquele. Poderiam ter fundado e melhorado centenas de escolas, bibliotecas, hospitais, creches. Agora, para culminar, um país vizinho abocanha um pedaço da Petrobras, que é nossa, é de seus acionistas, é do povo brasileiro, que certamente vai arcar com esse prejuízo material. Quem vai pagar pela honra do Brasil, tão abertamente atacada? Estamos alucinando, nos dirão as autoridades, alucinamos ser espoliados e roubados, já não pelo MST, cujo bonezinho tem sido usado por governantes nossos, mas pela Bolívia, que roubou, literalmente, algo nosso. Houve reação além de um protesto pífio ou da afirmação de nosso governante principal de que a Bolívia tinha direito de fazer o que fez e que não teríamos maior prejuízo? Primeiro, aliás, a Bolívia fez um pequeno treino, roubando uma siderúrgica. Como não houve grande reação, partiu para algo maior. De novo, ninguém nos defendeu, ninguém reagiu com firmeza, ninguém nos protege – é a sensação geral. Estamos perdendo, além de bens materiais, avanços possíveis e progresso, a nossa honra como país. Mas quem sabe é tudo fantasia nossa? Somos distraídos demais, alegremente ignoramos as graves estripulias que ocorrem no Brasil ou contra o Brasil: somos, afinal, habitantes da República dos Alucinados, em que tudo se perderá e a derrocada será inimaginável, se não abrirmos urgentemente os olhos para ver, os ouvidos para escutar e as mãos para trabalhar em nosso favor. Lya Luft é escritora

Nenhum comentário: