domingo, 7 de dezembro de 2008

60ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 09/08/2006

Ponto de vista: Lya Luft Descendo a lomba* "Fica difícil permanecer alheio à nossa degringolada. Como chegamos a tamanha decadência, não sei explicar" Por algumas semanas tentei não escrever sobre os escândalos brasileiros: a gente corre o risco de se contaminar com a feia doença do pessimismo. Tirei uma folga dos temas assustadores desta nossa democracia minada pela impunidade: pressões de autoridades e leis tortas liberam a corrupção e libertam bandidos. Em que aspectos nossa Justiça é boa, em que outros nos confunde ainda mais? A evidência e a complexidade do que vem acontecendo não admitem refúgio permanente em temas humanos como amizade, velhice, educação. Vamos ao que houve recentemente em nosso amado Brasil: Studio Atômica • Um monstro estuprou muitas vezes, retalhou e matou uma menina de 16 anos, enquanto seus comparsas matavam o namorado dela. Ele não vai a julgamento: também tinha só 16 aninhos na ocasião, coitado. Nossa lei não poderia ser mais parcial e fora da realidade, protegendo menores de idade e deixando órfã a sociedade em que psicopatas com bem menos de 18 anos estupram, matam e saem praticamente ilesos. Para eles, idade é documento, sim senhor. • Uma jovem facínora da classe média paulistana, que com dois cúmplices trucidou (matar não é só manejar a arma) os pais, e dali foi direto para um motel transar com um dos rapazes, obteve mais mídia do que o presidente da República. Foram raríssimas suas manifestações durante o julgamento: "Chorou de sair lágrimas". Mas também deu algumas gargalhadas com seus advogados. Se não for louca declarada, é de uma perversidade de assustar criancinha e gente grande. Em poucos anos estará solta. É a lei... • Certas escolas elementares preparam novas gerações de contraventores (que terão o aval das autoridades, se tudo continuar como está) usando uma cartilha do MST. Nenhuma novidade. O movimento original em favor dos desalojados de suas terras é legítimo e meritório. Mas o que vemos hoje são ilegalidades protegidas pelo governo. Representantes de movimentos do campo, que invadem e destroem propriedades privadas e públicas pelo país, e que violentaram o Congresso Nacional, em Brasília, freqüentam as cortes, nas quais são bem relacionados, com privilégios que eu quereria ter. Outro dia foram dar seu apoio a um candidato a presidente. Disseram, entre outras coisas: "Não queremos a volta da burguesia ao poder". Gente, estamos em pleno século XXI! Enquanto isso, fazendas produtivas continuam tomadas ou cercadas por bandos ameaçadores, sustentados com nosso dinheiro. Um dos líderes máximos desses grupos – que desvirtuam a verdadeira figura do colono, do trabalhador no campo – recentemente foi convidado a dar (e deu!) uma palestra na Escola Superior de Guerra: não escrevo "pasmem", pois a esta altura nada mais nos assombra. • Cresce a cada dia a lista de implicados na chamada máfia dos sanguessugas (outras tantas máfias aparecem a toda hora): muita gente, muitos conhecidos, teria aumentado sua conta bancária com dinheiro destinado a assistir, e possivelmente salvar, milhares de doentes. Não conheço dinheiro mais indecente: é dinheiro da morte. Desde que não manchem irremediavelmente a reputação de alguns inocentes, numa temível caça às bruxas com falsas incriminações de fundo político, tais investigações – se tiverem conseqüências – podem significar uma retomada da retidão moral do país. Mas podemos acreditar que desta vez não haverá a dança marota dos mensaleiros absolvidos? A frouxidão das instituições neste momento, os interesses políticos em época eleitoral e o exemplo da inaceitável absolvição dos mensaleiros não nos permitem grandes ilusões. Para começar, os sanguessugas não serão julgados tão cedo. Podem até continuar candidatos a cargos eletivos: a maioria deles realmente é. Se eleitos, terão imunidade. O que pensar de tudo isso? Fica difícil permanecer alheio à nossa degringolada. Começo a ter vontade de sumir – se não do Brasil, ao menos de aspectos de sua realidade que o insultam e mancham. Como chegamos a tamanha decadência, não sei explicar. Ninguém me dá uma explicação satisfatória. Mas consolemo-nos: a também confusa guerra está distante, podemos continuar alegrinhos, sem catiúchas caindo em nossa alienada cabeça. Os roncos e estrondos lá fora, de madrugada, são apenas os rachas na minha rua. As cotas para pessoas de cor entrarem em universidades, independentemente de sua capacidade, vão resolver a tragédia da educação brasileira, e o insensato estímulo ao racismo não parece importar. Na descida pela ladeira – que aqui no Rio Grande do Sul chamamos de lomba –, ou abrimos os olhos e fazemos melhores escolhas, ou os mantemos fechados, e... seja o que os deuses quiserem. * No Sul chamamos ladeira de lomba. Lya Luft é escritora

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