domingo, 7 de dezembro de 2008

63ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 06/09/2006

Homem, mulher ou pessoa? "Só nos pensando e avaliando primeiro como pessoas poderemos nos enxergar como homem ou como mulher" Neste país desinformado, desiludido e desassistido, em que a política foi trocada por um escrachado jogo de interesses e vantagens, os temas mais pessoais poderiam parecer supérfluos: mas é bom ter algo produtivo a debater, objeto de observação ou entusiasmo. Sendo assim, temas como o aparentemente cansado "masculino/feminino" continuam produzindo entrevistas, livros, seminários. Quando desanimamos das questões públicas, as humanas continuam fascinantes, fundamentadas no imprevisto e no inatingível, por isso sem respostas definitivas. Ilustração Atômica Studio Pesquisamos, discutimos e nos confundimos na questão dos gêneros. Queremos saber se além do biológico existe uma psique, até uma literatura feminina. (Faz parte do folclore a meu respeito dizer que escrevo para mulheres, ou pior: para "mulheres maduras". Quanta tolice.) Por outro lado, não vejo indagarem se existe uma literatura masculina, nem debatemos masculino/feminino nas artes plásticas, na engenharia, na medicina. Não se discute, que eu saiba, se arquitetas só podem desenhar casas ou interiores para mulheres. Mulher produz trabalhos mais amenos e doces, homem segue caminhos mais vigorosos e objetivos? Se ainda pensamos assim, está na hora de mudar, correndo, correndo. É como ser humano que devo questionar o que faço, o que pretendo, que significado posso dar à minha vida. As particularidades biopsíquicas de cada gênero são uma complementação, não a essência. Dessa perspectiva, o tema semelhanças e diferenças entre os gêneros pode ser abordado com mais equilíbrio, relativa lucidez e até algum bom humor. Escrevi em O Rio do Meio, irmão mais velho de Perdas & Ganhos, que a solidão do homem tem a medida da solidão de sua mulher. Não se pode falar num sem pensar no outro. As mudanças não se efetuam sobre o gênero feminino da raça humana, mas – inevitavelmente – sobre os dois. Ocorrem em toda a sociedade, aliás, em que tudo é interdependente. Quanto às mulheres, tudo, menos ambicionar ser a mulher-maravilha: ela é inevitavelmente uma chata. Somos assolados pela propaganda dessa figura assustadora: um Monte Everest de perfeições, linda e competente, sensual e grande profissional, independente mas disponível, romântica mas vigilante, devotada, abnegada, vitimal... Não parece alguém que a gente possa amar, com quem se possa dar risada, jogar conversa fora, namorar, aconchegar-se, fazer descobertas desafiadoras ou sofrer perdas dolorosas, caminhar pela vida até, quem sabe, envelhecer – se esse ser perfeito envelhecesse, é claro. Depois de ter estudado a alma humana, com grande curiosidade em relação à feminina, Freud perguntou, já aos 80 anos: "Afinal, o que quer uma mulher?". Não se desperdicem esforço e tempo com demasiadas teorias procurando a resposta, pois se existir ela mudará de pessoa para pessoa, de cultura para cultura, às vezes de ano para ano. Homem ou mulher, homossexual ou heterossexual, latino, europeu ou oriental, todos temos algumas ansiedades básicas que nos tornam irmãos: desejo de segurança e de comida. Depois disso, como franjas, como complementos que mudam de cultura para cultura, vêm desejo de afeto e sentido, de ter alguma importância, para alguém ao menos. Desejo de imortalidade – mas esse é um luxo. Esses impulsos e desejos são diferentes em nuanças e intensidade em homens e mulheres? Creio que sim. Observar tudo isso é fascinante. Porém, viver é mais importante do que compreender, a realidade é mais plena do que a teoria, que deve ser perseguida com inteligência, mas sem aflição e tumulto. A discussão homem/mulher é válida para que nem um nem outro se sinta objeto ou possuidor, melhor ou pior, mandante ou servo. Nem haja desculpas para lamentação e vitimização – do tipo "ah, eu te dei a minha juventude, eu me sacrifiquei", da parte das mulheres; nem o velho "eu não te deixo faltar nada, ora bolas!", da parte dos homens –, mas a gente cresça em companheirismo, respeito e afeto. Só nos pensando e avaliando primeiro como pessoas poderemos nos enxergar como homem ou como mulher. Sem ambicionar nada de fixo e indiscutível, somos um para o outro, e para nós mesmos, um desafio. Quando isso falta, quando ficamos atordoados ou apáticos em qualquer setor, do mais íntimo ao social, ao comunitário e ao político, passamos de guerreiros a vítimas ou manipulados, sem participar de nosso próprio destino. Se no império do grande Partido do Interesse Próprio as coisas públicas andam repulsivas ou desanimadoras, no terreno existencial ainda se pode buscar e descobrir, sem sentir que zombam da nossa inteligência. Lya Luft é escritora

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