domingo, 7 de dezembro de 2008

74ª Crônica escrita por Lya Luft para "Revista Veja" em 17/01/2007

Ponto de vista: Lya Luft Pode ser melhor "A gente começa mais um ano tendo de acreditar. Não em receitas milagrosas, mas num povo inteiro enxergando melhor, querendo o melhor, e fazendo o melhor que pode" Se eu ficasse amarga com tudo o que acontece de negativo – não é meu jeito –, contaminaria a casa onde moro, a família que me cerca, o companheiro que está comigo, os amigos e o mundo. Porque sou importante? Nada disso. Porque cada um de nós é uma partícula mínima, parte do grande oceano em que somos lançados ao nascer: cada gota envenenada modifica o todo, por pouco que seja. Por essa razão, todos, industriais e garis, mulheres milionárias e faveladas, trabalhadores e doentes acamados, os que estão nascendo e os moribundos, somos igualmente importantes. Essa é a grande, real democracia, pois a outra anda mancando, confusa e parcialmente mascarada de vale-tudo. Ilustração Atômica Studio E eu, apesar de tantas realidades que provocam medo, angústia ou indignação, sou dos que ainda acreditam que a vida vale a pena, que as pessoas querem ser boas e felizes, e mais: que felicidade existe, na forma de harmonia consigo mesmo, com os outros, com a mãe natureza, com seu grupo, cidade, país. Pelo menos uma tentativa se pode fazer: a de existir em harmonia relativa. Porque não sendo nem anjos nem porcos, estamos no meio-termo: passíveis de cometer horrores ou mesquinharias, gestos comoventes, grandiosos ou secretos. É assim a vida. Um lençol curto, diz uma amiga; uma escada rolante que a gente tenta subir pelo lado que desce, dizia outro. "Você vai morrer enforcada na echarpe do seu romantismo feito uma Isadora Duncan", sentencia alguém. Pode até ser, mas eu preciso dela, dessa echarpe, que não é alienação nem ignorância dos nossos males: é a fonte, o suporte, o alimento de que necessito para não me amargurar. Roubalheira de um lado? De outro, há tentativas de realmente ajudar. Cinismo dessa parte? Da outra parte, real honradez. Apatia ou frivolidade? Mas também capacidade imortal de indignação. Desejo de destruição e vingança em uma pessoa, mas em muitas vemos esforço de transformação, vemos devoção, carinho, vontade de entendimento. Por toda parte dor, muita dor. Mas nessa teia, nesse quebra-cabeça, a gente começa mais um ano tendo de acreditar. Não em receitas milagrosas, não em cartolas de mágico das quais saltem pessoas mais amorosas, saúde, emprego e educação em crescimento, um país vigoroso, uma realidade tranqüila, menos violência e menos abandono, menos coroamento da corrupção e da desonestidade. Mas num povo inteiro enxergando melhor, querendo o melhor, e fazendo o melhor que pode, com seus líderes, seja de bairro, de estado, do país, fazendo o mesmo. Acredito em famílias em que até pais separados conseguem ser amigos e dar aos filhos a segurança do seu amor, que nada deveria ter a ver com o fim da relação marido/mulher. Famílias em que filhos adultos, mesmo distantes, vêem pai e mãe com camaradagem e respeito, e alegria, como seres humanos que são, imperfeitos mas dignos de amor, com bagagem de experiência a ser buscada e curtida. Acredito que pessoas que perderam alguém muito amado aos poucos, duramente, entendem que a melhor homenagem a quem partiu é tentar voltar a viver na possível plenitude; acredito em esquinas sem crianças pedintes, calçadas sem mendigos, pontes sem famílias morando embaixo, ruas sem assaltantes, noites sem assassinos, casas sem gente temerosa protegida por grades, alarmes e cães ferozes. Acredito em líderes com boa vontade e humildade, querendo ajudar à sua gente, usando para isso de seu preparo, informação, grandeza pessoal e valor. Em empresas onde funcionários e operários são tratados como gente, não apenas porque trabalhador bem tratado produz mais, mas porque somos todos irmãos. Talvez eu espere algo miraculoso. Mas, se a gente der um passo real na direção disso, terá valido a pena acreditar: em si mesmo, no outro, na família, nos amigos e colegas, nos líderes, nos filhos e nos pais: não como perfeição, mas como esperança, grão de otimismo, vontade de algo melhor. Se eu ficasse amarga, porém, se nós fôssemos contaminados por esse vírus maligno do pessimismo, de nada adiantariam crianças brincando, ondas batendo, rios correndo, estrelas faiscando, gente se amando: seríamos meros fantasmas. Então, o jeito é acreditar que, com força, fé e boa vontade, 2007 nos será benigno. Lya Luft é escritora

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