domingo, 14 de fevereiro de 2010

#Os complacentes e os devotos

Martha Medeiros: Os complacentes e os devotos Eu gosto de futebol, desde que o jogo seja uma decisão do meu time ou da Seleção. Mas gostar desse jeito complacente é o mesmo que não suportar futebol, porque futebol não se gosta, apenas – se venera. É o que faz homens plantarem-se em frente à TV toda semana para babar diante de dezenas de gols que se repetem e repetem e repetem. Ou não se repetem? Perguntei outro dia para um exemplar da espécie masculina: os gols dessa rodada não parecem iguais aos gols do ano passado, e aos gols de 1999, e aos de 1987? Ele, depois de rugir, explicou que cada gol no mundo é único. Não entendi, eu disse. Ele sugeriu que eu nem tentasse. Mas tentei, e deduzi o óbvio: tudo que nos parece insano é justificado pela paixão. Quem tem no futebol uma de suas razões de viver consegue enxergar magia e novidade em detalhes para os quais os complacentes não são capacitados. Alucinados por futebol podem passar 120 anos em frente à TV todos os domingos e em todos os domingos eles verão um festival de gols absolutamente inéditos. Para quem não é obcecado por basquete, todas as cestas são iguais. Para quem não é um entusiasta do tênis, uma partida é de um marasmo irritante. Para quem não é viciado em ler, um livro pode se equiparar a um aparelho de tortura. Para quem não é fã de novela, viu uma, viu todas. E para quem não enlouquece com o Carnaval, se reprisarem o desfile do ano passado dará na mesma. Andei lendo a respeito do dia a dia de algumas pessoas que não apenas gostam de Carnaval, e sim o reverenciam, e fiquei surpreendida com o grau de envolvimento que essa festa invoca. Tem gente que dorme, come, respira Carnaval o ano inteiro. Assim que uma edição termina, começa-se a planejar a próxima, e nada, absolutamente nada se repete. Os sambas-enredos não são iguais, apesar de se parecerem. As fantasias não são similares às dos outros anos, como um distraído poderia julgar. Não ouse dizer que já não há mais o que inventar nos carros alegóricos: só um ranzinza se atreveria a afirmar tal disparate. Nem a Luiza Brunet é a mesma de outros carnavais. Todo Carnaval é único, todo Carnaval é inédito, todo Carnaval é um gol que está por ser feito. Como até aqui eu sempre fui uma fria admiradora do ziriguidum, claro que também nunca entendi tamanha devoção, mas estou prestes a me converter. Pela primeira vez, irei assistir ao vivo a um desfile de escola de samba no Rio de Janeiro. Amanhã estarei na Sapucaí e meu coração já está batendo mais forte e meu sangue correndo mais rápido. Ainda nem vi nada e já me sinto passista desde criancinha, imagine amanhã: é provável que eu caia de joelhos e beije o chão. Para a turma que não compreende qual é a graça de um gol mil vezes visto ou de mais um desfile de escola com as mesmas baianas, as mesmas madrinhas e os mesmos refrões, este Carnaval 2010 parecerá idêntico ao Carnaval do ano passado, ao de 1999 e ao de 1987, mas algo me diz que vou trocar de bloco: amanhã entrarei para a turma dos devotos, aqueles que já nem tentam explicar o que os complacentes nunca iriam mesmo entender. Martha Medeiros

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