segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Extraido do site ARTE LIVRE

Lya Luft Contos de fadas! Os terríveis contos de fadas - com suas tramas sinistras, bruxas perversas e belas princesas - povoaram a infância da escritora Lya Luft. As doses maciças de fantasia marcaram para sempre o espírito da menina, forjando os elementos que mais tarde iriam predominar em suas obras: o mistério, o encantamento das narrativas onde a virulência atravessa o veio das emoções humanas e desemboca em metáforas malignas. Ela se considera mais romancista que poeta. Escreve depois de estruturar na cabeça, por um longo tempo, as matrizes de suas obras. Na poesia é contida, pessoal; no romance se expande. Os escritos da juventude, nem faz questão de reeditar, mas seja em prosa ou em verso, seus textos são obsessivamente transparentes. Lya faz absoluta questão de ressaltar que sua linguagem é deliberadamente clara, limpa. “Creio até que sou um pouco pobre de vocabulário. Realizo um esforço sistemático de tornar minha linguagem a mais simples possível. Não quero que ela seja uma barreira entre o que desejo comunicar e o leitor”, diz, modesta. Sob o brilho das palavras é sempre possível encontrar em Lya Luft um poderoso canto de mulher. É assim nos poemas de seu livro “O lado fatal”, escrito pouco depois da morte de Hélio Pellegrino, com quem foi casada por dois anos e três meses. Já em seu romance “Exílio” é possível encontrar anões misteriosos, a temática da loucura e do infortúnio percorrendo os dramas familiares submersos, o clima predominantemente sinistro de suas narrativas – tudo operando hipnótica sedução sobre o leitor. A trama apanha-o geralmente de surpresa e enlaça-o para sua dimensão torturada. Pena que essa obra límpida e envolvente é pouco conhecida dos brasileiros. Lya divide sua carreira literária em duas partes: a fase “adolescente”, quando ainda tateava as estruturas literárias e se sentia insegura para desenvolver os assuntos que hoje compõem os seus livros; e a fase madura, de depois dos 40 anos, quando adquiriu segurança para compor suas histórias a partir de temáticas perigosas, como conturbadas relações familiares, os traumas da infância e suas seqüelas na vida adulta.. Tradutora de Rainer Maria Rilke, Bertolt Brecht e Virgínia Woolf, Lya também teve seus livros publicados no exterior. “O quarto fechado” Já foi publicado nos Estados Unidos; “Exílio” saiu na Inglaterra; “As parceiras” e “Reunião de família” foram traduzidos para o alemão. “Sou uma pessoa com um olho triste que escreve e um olho alegre que vive; escrevo para tentar entender a vida, o mundo”, define-se Lya Luft, para afastar a impressão de mulher amargurada e sofrida que suas personagens passam. O olho triste de Lya capta com exatidão o universo conturbado das pessoas em crise, sob a densa névoa da incerteza desesperadora, ou sob os pesados braços do passado aterrador. Em “Exílio”, esmiúça a vida de uma mulher de meia-idade, talvez um pouco mais, que se exila por uma semana na Casa Vermelha – pensão de segunda categoria – para reorganizar-se. Quer dar ao amante o tempo necessário para estruturar a vida, a fim de que possam morar juntos. Ela tinha um filho, ele também; um filho com graves problemas. Na Casa Vermelha a personagem convive, em lances de amor e raiva, com um velho amigo, um anão que, na infância dela, foi decisivo para ajudá-la a superar o suicídio da mãe – bonita, distante, alcoólatra; matou-se com um tiro. A personagem ainda criança entrou no quarto da mãe, viu o irmão dormindo com o seio materno entre os lábios e também deitou-se ao lado da morta, sem perceber o que se passava, até ser acordada com o desespero da família. O irmão enlouquece, ela visita-o com certa freqüência numa casa de recuperação; angustia-se com a condição dele e com a sua também. Ela fascina-se com a presença poderosa da densa floresta, bem próxima á Casa Vermelha. Mas a floresta é uma reserva. Não se pode entrar. Lya Luft relata, em primeira pessoa, a semana decisiva dessa mulher rejeitada pela mãe suicida. E a trama prossegue. Mas Luft faz questão de destacar que seus romances não são autobiográficos. Aliás, de autobiográfico, mesmo, entre suas obras, apenas “O lado fatal”, onde fala de sua vida com Hélio Pellegrino, das doçuras dessa convivência apaixonada, do drama da morte interferindo numa relação gratificante, um corte súbito na felicidade alcançada. “Não tivemos o tempo da monotonia, do desgaste”, diz a autora, que já foi casada com Celso Pedro Luft. A morte inesperada do amado Pellegrino talvez tenha deixado como conforto a sensação de um amor intemporal, porque persiste – e que parece eterno porque supera a vida e s uas dilacerantes surpresas. O Lado Fatal Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital e partiu. Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu coração emudecido e o meu, varados por essa dourada foice. Por onde vou deixo os rastros de um sangue denso e triste que não estancará jamais. O meu amado tinha tantas manias: perdia canetas, lápis, chaves. Houve um livro que comprou três vezes em um mês: depois encontramos todos e mais um sob velhos jornais. Mandei fazer uma estante nova para organizar seus livros: mas quando ele se foi, mas que livros havia ali de novo jornais. Nunca sabia bem por que os guardara. Eram parte do seu ninho, como nossos lençóis e os móveis da sala. Não conseguia sentar-se mais que meia hora para escrever: vinha ao meu escritório, usava de pretextos para me distrair, dava um beijo, fazia confidências, comentava assuntos do dia. Quando me via triste, dizia entre compassivo e magoado: ”Você hoje está numa melancolia profunda?” Certa vez discutimos, e ele deixou sobre minha máquina de escrever um bilhetinho: “Hélio Pellegrino ama Lya Luft.” Nunca tivemos mais que vinte anos. “A morte, velha amiga, me sorri: agora tem do seu lado aquele que me foi tudo nesta vida. Tem mãos macias a velha senhora, traiçoeiras e leves mas reveladoras: porque um dia me recolherá também para debaixo do seu manto e haverá esplendor.” Texto extraido do site ARTE LIVRE

Nenhum comentário: