segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Minha autora preferida Lya Luft

O pôr-do-sol parece brotar do galho escuro, inerte no calor; tomeium banho para espantar o torpor do corpo e do coração. Ainda nãoconcluí a minha dolorosa contabilidade.Estou um pouco arrependida de voltar atrás, dizendo ao jardineiroque não mexesse debaixo da árvore: quem sabe o que vou sofrer por isso?Mas amanhã decido o que fazer. Ou depois da inauguração, quando tudoestiver feito, o último nó dado, os rumos garantidos. No andar de baixo as tapeceiras deixaram tudo preparado. Telefonode meu escritório para Olga, ela quer saber se estou animada. - Amanhã apareço, talvez com a mulher de Pedro, já sabemos o sexodo bebê; vai ser outro menino; e vai-se chamar Mateus. - Ótimo. Até amanhã então, vovó Olga - brinco. Ela desliga com umaespécie de bufido sarcástico. Abro a porta dos fundos, sobre o jardim quase escuro. Neste mesmolugar, nesta soleira, um dia espirrou um sangue que eu amava. Horas afio, dias a fio, escovas e baldes, tentando apagar o inapagável. Só otempo, diziam, cura todas as dores. Mas pensei ter entendido o quesignificava o mar Vermelho. Daqui, a figueira se alteia em toda a sua imponência. Até a grutaformada pelas raízes são umas dezenas de passos. O jardineiro empilhouas madeiras velhas, mas não mexeu no mato: umidade, segredo enroscadopor toda parte nos musgos insidiosos. Volto ao meu quarto, quase correndo: instintivamente, como quandoera menina, viro-me uma vez, na escada, não há nada atrás de mim, ali? Depois que Henrique saiu de casa, comecei a dar longas caminhadassozinha; já tivera esse hábito com Olga, que no começo dizia fazer issopara "manter a linha", pois tinha tendência de engordar; hoje, diz queé para "não endoidecer de vez". Caminhava sem endereço, vento noscabelos, imaginando que maneira de andar Henrique criticara em mim, quejeito de lidar com as pessoas era esse, que ele achava horrível? E eunão gostava de mim: por quê? Talvez tivesse desperdiçado meu casamentocom Jaime; talvez nem tivesse sido um bom casamento, e nada dera certo. Por que também perdera João, que me amava, sem dúvida me amavamuito? Seria só por problemas dele? O que tinha querido me dizer hámais de 20 anos com aquele "por que ela não era importante"? Em criança eu me sentia sempre endividada, ré, insuficiente:adulta, fora excessiva. Como se fazia para acertar? Por que Pedro, sendo como era, teria de ser mais feliz do que meufilho - sendo como era? Meus questionamento eram demasiados, a dor forte demais, eu jogadade um lado para outro, sem ter a quem recorrer: Olga fora a minhaconselheira a vida toda, de alguma forma essa relação acabariadesgastada, se eu só me apoiasse nela. Decidi, pela primeira vez na vida, viajar, e sozinha; fiz reservaem um hotel, numa praia que a essa altura do ano estaria quase deserta;levei livros, material de desenho, minha bagagem de angústias. AviseiOlga, que diria a Henrique, e parti. No carro, segurava o volante comose fosse a minha última tábua: teria forças para mergulhar tão fundo? Amontanha-russa de euforia e depressão, que duraria quase dois meses,começava ali mesmo, na estrada. Voltei, sentindo-me estrangeira. Voltei mais velha, como setivessem passado anos. Nesse parto de mim mesma, sempre incompletoporque só morrendo se termina de nascer, eu não distinguia a dor físicada psíquica. Quando procurei Olga, disse apenas: - Acho que partejei a mim mesma - ela me abraçou, calada; ecompreendeu. Eu encontrara uma ponta de novelo, não tudo; o resto, ainda hojedesenrolo ao desenhar meus tapetes, escolhendo fios, observandotexturas, projetando tentáculos no adeus, na surpresa, no terror, equase sempre na beleza final. Henrique veio me ver, não logo; mas veio. Fazia força para sernatural, como eu: - Mãe, você está de cara ótima, tem de tirar férias mais vezes. -Levantou a mão, tocou meu ombro de leve, sorriu. Pediu lanche paraRosa, ouvi os dois rindo na cozinha. Meu caminho até Henrique aindaseria laborioso. Eu estava numa nova fase da vida: nem sabia direito qual, como,mas estava na beira de um novo começo. Alguma coisa parecida com paz seinstalava: não a paz da fuga, mas do mergulho, do resultado que vemdepois do mergulho, quando se sabe que está começando a emergir, mas nãoo que vai aparecer na superfície. E mesmo assim, se vai. Então, João voltou. Com ele, as velhas paixões, mas também umanova presença; Lívia, sua filha, coração muito mais experiente do quesua idade, sem rumo algum. Quando a conheci, ela iniciara uma longa edesesperada viagem. Lya luft

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