sábado, 6 de dezembro de 2008

12º Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 08/09/2004

Ponto de vista: Lya Luft Deixemos Daiane viver "O drama de quem esperou demais, no caso de um 'fracasso', é a dor revivida dos seus próprios sonhos não realizados – o que faz mal a quem se desejava fazer bem" O fanatismo é um par de lentes perigoso: provoca leituras tortas e atitudes crispadas. Certa vez escrevi que o tradutor de literatura deveria ser escritor, ou ter uma boa bagagem de leitura, além de sensibilidade literária. Precisaria ter o que chamamos "ouvido treinado", para sentir o texto até nas entrelinhas, sem o que ficaria muito difícil interpretar o autor estrangeiro. Ilustração Ale Setti Minha afirmação desencadeou protestos naqueles leitores que pararam depois da primeira parte da frase, bloqueando o resto. Para eles, eu tinha lançado uma sentença mortal: só escritores poderiam ser bons tradutores, ninguém mais. Na sua interpretação, eu deixara de fora um sem-número de colegas, grandes profissionais, mas que não haviam publicado livros. Se eu realmente tivesse afirmado isso, teria sido, além de injusto, uma grande tolice. Naquela ocasião, ainda inexperiente, tentei me explicar. Para muitos, não adiantou nada: estavam obcecados, ou simplesmente à espera de uma ocasião para descarregar seu mau humor – escritores também servem de cabide para os fantasmas alheios. Poucos compreenderam: "É mesmo! Eu nem tinha percebido". Esses não usavam lentes grossas demais. Evoco esse episódio para notar que, não raro, tendemos ao mais cego fanatismo, base de muita incompreensão, nas opiniões e também nas idolatrias. As Olimpíadas foram um bom exemplo disso. A torcida saudável opõe-se à histeria que projeta sobre os esportistas toda a carga de frustração de quem torce fanaticamente. Partindo desse princípio, talvez a torcida tenha ultrapassado os limites do desejável com relação à gaúcha Daiane. Há meses acompanho a pressão exercida sobre sua figurinha simpática e ágil, e sobre a de tantos outros atletas de todos os tamanhos e idades. Imagino a montanha de esperança largada em seus ombros, como se o orgulho de um país inteiro dependesse do desempenho deles. Na medida do possível, avaliei quanta ajuda concreta o Brasil lhes deu na forma de patrocínio, cuidados de toda sorte, coisas de que não entendo, mas que devem ser indispensáveis para um atleta que vai competir em nível mundial. Fui descobrindo que era muito pouco. O que havia em abundância era torcida, isso sim, fanática nos momentos decisivos. Ela me pareceu perigosa, da mesma forma que acontece com o vestibulando cujos familiares roem unhas e tomam calmantes, como se o centro de tudo fossem eles, como se vida e honra da família dependessem de um concurso. Se o aluno é reprovado no vestibular, se o atleta ou a equipe falham na competição, família ou país se frustram, e a celebração vira cobrança. O drama de quem esperou demais, no caso de um "fracasso", é a dor revivida dos seus próprios sonhos não realizados – o que faz mal a quem se desejava fazer bem. Homenagear é estimular, apoiar, dar as melhores condições e o maior carinho, mas... deixar viver. Lya Luft é escritora

Nenhum comentário: