sábado, 6 de dezembro de 2008

13ª Crônica de Lya Luft para"Revista Veja" em 22/09/2004

Onde está a nossa essência? "A rainha da nossa perplexidade, que torna o presente tão importante, o amor tão urgente, a bondade tão necessária – ela, a majestade morte, deveria nos tornar muito melhores do que somos" A recente carnificina numa cidadezinha russa deixou muita gente nauseada, assustada. Refletiu-se imediatamente no mundo inteiro, pois os meios de comunicação modernos praticamente anulam distâncias, com sua afiadíssima lâmina dupla: de um lado, o mundo à nossa disposição com suas belezas e encantos; de outro, nós expostos como nunca ao horror. Aliás, desde aquele 11 de setembro de 2001, sempre presente, parece que mudamos. Não nos satisfazem mais receitas fáceis de viver bem. Estamos nos questionando seriamente. Buscamos significados mais profundos, porque nos sentimos responsáveis: por nós, pelo outro, pelo mundo, pela vida. E pela morte? Pela morte às vezes também. Ou, ao menos, pelo que fazemos em relação a ela, ou diante dela. Outro dia fui ao velório de um homem muito moço. Abracei a jovem viúva, e mais uma vez me dei conta do peso dessa palavra. Recordei a primeira vez em que tive de escrever "Estado civil: viúva". Embora aquele fosse meu estado havia semanas, senti um choque. Mesmo tantos anos depois, a sensação retorna: sou eu, isso aconteceu comigo? Ilustração Ale Setti Como todos ali, eu me sentia impotente para ajudar, a morte sendo a maior prova da impotência de todos os amores. Fugi do tumulto de emoções que enchiam o recinto e saí para o parque, onde os jazigos mal se distinguiam no gramado com árvores e pássaros. Pensava no quanto as palavras não adiantam nada, são nada, tudo é nada diante dessa realidade irreal: aquele a quem amamos – filho, marido, pai, mãe, irmão, amigo –, que momentos atrás nos abraçava, falava conosco, esse se ausentara. Sua carne, seu cabelo, sua mão, seu olho atrás da pálpebra tornavam-se meros resquícios, e também nos eram tirados. Onde está a nossa essência? Onde estaremos nós um dia, um dia que pode ser hoje, amanhã, daqui a um mês? Por não saber a resposta, nos defendemos no cotidiano, no trabalho, na arte, na filosofia, na bebida, na droga, na frivolidade, na ideologia – não importa. Em tudo o que de legítimo ou ilegítimo fazemos, nos ocultamos. Atrás de barricadas belas ou feias, medíocres ou grandiosas. Porém o olho mágico da que fatalmente virá nos espreita, e dificilmente estaremos preparados. Ninguém nem ao menos sabe nos dizer o que é estar "preparado" para isso – isso que é a um tempo separação e encontro. A rainha da nossa perplexidade, que torna o presente tão importante, o amor tão urgente, a bondade tão necessária, a ética tão essencial, a arte tão explicável – ela, a majestade morte, deveria nos tornar muito melhores do que somos. Muito mais generosos. Muito mais audaciosos. Muito mais abertos para a vida, a alegria, a claridade, em lugar de tão enredados em nossas intrigas mesquinhas, nossas reclamações cotidianas, nossas vinganças minúsculas. Porque só com vida bem vivida, com decência, coragem e doçura, prepara-se alguém, ainda que sem muita habilidade, para isso que chamamos morte: que nos espreita na cama, no carro, no avião, na calçada, ou na escola invadida por um terrorista alucinado. Lya Luft é escritora

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