sábado, 6 de dezembro de 2008

23ª Crônica de Lya Luft para a "Revista Veja" em 09/02/2005

Ponto de vista: Lya Luft Novidades assustadoras "Acho esquisito falar 'no meu tempo', porque nosso tempo deve ser sempre hoje. Somos tão fixados no mito da eterna juventude que depois dos 30 nem o tempo é mais nosso, somos exilados da própria vida?" Devo avisar que detesto saudosismos, do tipo "No meu tempo era tudo melhor". Primeiro, porque quase sempre é engano: antigamente as coisas eram, em vários aspectos, bem piores. Não havia ar-condicionado, nem penicilina, nem avião, nem computador, nem a possibilidade de discutir abertamente assuntos graves, nem terapia para endireitar a cabeça quando ela entorta demais. A verdade era escondida debaixo do tapete, as relações humanas debaixo dos panos, e a sem-gracice devia ser bastante grande... Não havia um milhão de coisas que facilitam, ampliam, iluminam nossa vida. Também não havia tanta violência, concordo: ou, antes, havia outro tipo e outra dose de violência. Guerra? Sim, ela ocorria mais ou menos constantemente, e bastante cruel. Nas Cruzadas a carnificina era, como a Inquisição, em nome de Deus. Queimavam-se supostas bruxas na fogueira, junto com hereges, judeus, e não sei quem mais... Mas quem fritava naquele fogo eram inocentes pais e mães de família, eventualmente crianças. Relatos históricos são arrepiantes. O povo – aristocratas e povão – assistia animadíssimo. E na guerra não se apertava um botão lançando bomba: o inimigo era decapitado ou estripado, cara a cara. A média de idade das pessoas (falo das que viviam acima da miséria absoluta, mais absoluta que a nossa) era de 20 e poucos anos: morriam cedo, desdentadas, podres, malcheirosas. Tinha-se quinze filhos para que sobrevivessem cinco no meio da imundície e da ignorância. Seja como for, não sou saudosista. Também acho esquisito falar "no meu tempo", porque nosso tempo deve ser sempre hoje. Somos tão despossuídos, tão fixados no mito da eterna juventude que depois dos 30 nem o tempo é mais nosso, somos exilados da própria vida? Mas algumas coisas atuais eu confesso contemplar com grande susto, e não é só corrupção, confusão, violência e drogas, ou falta de vergonha. Se, conforme alguns filósofos, a capacidade de espanto é essencial, estou bem, aliás. Porque, por mais que viva, cada dia descubro novidades: deliciosas ou assustadoras. Entre essas está a queda de nível da nossa educação e cultura. Há muitos anos reduziram o tempo de estudo: havia cinco anos de primário, quatro de ginásio, mais três de segundo grau. Depois tiraram o latim, como se fosse inútil – e o francês, não quero nem saber por qual razão. Não sei se ainda aprendem inglês na escola, para alegria dos cursos de idiomas, que substituem o que se aprendia antes no currículo habitual (conversação, claro, é outra coisa; aperfeiçoamento, idem), assim como o pré-vestibular engorda tanto mais quanto pior a qualidade das escolas. Atomic Studio Agora leio que o inglês já não é um critério de eliminação para quem quiser prestar concurso para a carreira diplomática. Não sei se essa é de rir ou de chorar. Provavelmente a decisão, como tantas outras, vai ser anulada quando alguém tiver um acesso de iluminação mental. Eu acho o inglês cada dia mais necessário, para o computador, a ciência, até a arte. Não adianta dizer que só se deve ler em português, só beber coisa produzida nacionalmente, abaixo a Coca-Cola e o resto. Na sua santa burrice, os propagadores do estreitamento, da separação e do isolamento, do nivelamento por baixo, ao que parece desejam que não sejamos continente, mas uma ilha no meio da civilização ocidental. Que talvez nem seja lá grande coisa, mas é o que temos. Em lugar de nos isolarmos, bem que podíamos tentar nos integrar mais (atenção, não falo em subserviência, macaquice, imitação: falo em integração). Em vez de bancarmos os subdesenvolvidos fanáticos pela chamada cultura nativa, devíamos aprender mais com quem tem 2 000 anos de tradição cultural, bibliotecas, arquitetura, arte, filosofia. E reconhecer o que eles têm de ruim, não secretamente aspirando a isso... É preciso cuidar: ou em algum tempo, com mais algum esforço, estaremos morando em árvores, fazendo exercício no cipó, e tomando banho de rio junto com os jacarés. Ah, ia esquecendo: aí, sim, o inglês será tão dispensável quanto o português: teremos voltado a grunhir. Lya Luft é escritora

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