sábado, 6 de dezembro de 2008

24ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 23/02/2005

Ponto de vista: Lya Luft Quanto pior, melhor "Música dirigida, brincadeiras dirigidas, a vida toda dirigida como manada: repito, somos manada, a salvação é transgredir ao menos pensando" Tão rígidos somos que qualquer coisa que fuja ao nosso gosto pessoal, tantas vezes duvidoso, é posta no índex. Esse filme? Nem pensar, o diretor é desconhecido ou não cabe no quadro dos nossos preconceitos. O livro? Imagine, o autor ou autora foi malhado pela crítica. Cuidado: quem não tem mente aberta não gosta nem entende de arte. Virginia Woolf dizia que o verdadeiro artista e crítico deveria ter pelo menos "a mente andrógina". E nós com tanto medo de que alguém desconfie de que não somos 100% macho ou fêmea... Pobres inseguros, metidos na armadura da arrogância – que só na juventude pode ter lá sua graça; depois, é de uma chatice monumental. Por que não contemplar tudo, e depois escolher? Afinal, energia atômica mata, mas também cura o câncer. Faz algum tempo ando implicante com as implicâncias que me assediam: alguém me telefona para dizer que escolhi um membro de sua família, do qual jamais ouvi falar, para esculachar em uma coluna; outro me diz que viu seu pai em um de meus primeiros romances, escrito quando o ofendido nem teria nascido. A loucura geral se espalha em forma de burrice ou impertinência. Fico a pensar em que eu escapo disso, em que sou cúmplice e participante. Atomica Studio Eu sei, vou ficando implicante também. Sendo pouco original, os temas que abordo são invariavelmente os humanos, também nada originais: família, desencontro, desrespeito, ressentimento, pouca estima por si e pelo outro, baixaria, mistério, morte, desperdício de vida ou vidas que podiam crescer mas encolhem à sombra da mágoa e da futilidade. E também nosso problema com quietude e silêncio: o barulho como acompanhamento permanente. Restaurantes do mais simples ao razoável (nos bem sofisticados ainda não é assim, mas aí o bolso chia) têm o som sempre aberto em todos os decibéis, ou pior: música ao vivo, supremo agrado ao cliente. Como pedir ao cantor, ao tecladista, ao saxofonista, que baixe um pouco o tom para a gente não só conversar em vez de gritar, mas ouvir o que ele toca? Praia, agora, tem alto-falantes ou pequenos palcos onde alguém tenta animar os veranistas que de outro modo, em lugar de conversar, brincar e aproveitar a praia para curtir o mar e descansar, iam morrer de apatia. Num desses pequenos palcos escutei outro dia, olhando o mar de minha sacada, todo um desfile de cães: com "vestidinho de broderie e rendas", com "calça de veludo devoré" (seja lá o que isso for). Acho que disseram "meias e sapatinhos", mas não ousei espiar. Festa infantil deve ser um tormento constante para as crianças. Recreacionistas podem ser um alívio quando os pequenos formam um mar de minitsunamis incontroláveis. Mas me fica a idéia de que ninguém mais sabe brincar ao natural. Música dirigida, brincadeiras dirigidas, a vida toda dirigida como manada: repito, somos manada, a salvação é transgredir ao menos pensando. Somos muitas vezes títeres comandados, buscando uma felicidade mensurável em dinheiro, decibéis e contorções. Até o sexo começa a ser dirigido – ternura, paixão, sensualidade boa trocadas por acrobacias, ordens, receitas. Em criança, ouvi histórias sussurradas (que me pareciam confusas) sobre recusar-se a cumprir o aborrecido "dever" (condenando os pobres maridos à infidelidade e à culpa). Sobre isso também escrevo há décadas. Hoje caímos no extremo oposto: o privado cada vez mais público, tudo posto em manchetes. Temos os manuais de prazer, de etiqueta, de ganhar dinheiro, de fazer sucesso e ser competente, manuais de vida. De morte acho que também. Logo vou investigar qual a melhor posição, a hora do dia e, quem sabe, a música ao vivo para acompanhar a minha despedida deste mundo estranho e por isso fascinante, matéria viva de muitos futuros livros e cogitações. Lya Luft é escritora

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