sábado, 6 de dezembro de 2008

27ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 06/04/2005

Ponto de vista: Lya Luft Uma Páscoa particular Minha Páscoa mais recente foi deixar a casa na qual vivi por mais de trinta anos. Aprendi que vivemos em ciclos, que os melhores ciclos se encerram e, se foram bons, acabam com doçura, permitindo que novos se abram com alegria Tenho escrito sobre os chamados eventos ou dias especiais com intencional atraso. Uma reflexão tardia, não importa. Gostinho de transgredir meio infantilmente, entrando na ciranda geral com descompasso. A Páscoa me fez pensar com mais força no constante renascimento de todas as coisas: plantas, clima, gentes, momentos. Tudo é processo, que a maioria das vezes não percebemos: estamos ocupados demais perseguindo o poder, o prazer sem afeto, a posse, a distração e o esquecimento. Mas a vida corre atrás de nós, é mais rápida, nos alcança, fareja nossos calcanhares, sacode a cabeça, dá sua risadinha muitas vezes irônica: – Ei, você, acorde, vire homem, cresça e apareça, seja adulto, seja adulta, seja uma pessoa inteira. Escolha, assine embaixo, pague os preços e não choramingue demais. (Que um pouco, é claro, a gente tem licença de se queixar, sem fazer disso um ofício.) Ilustração Atômica Studio Mesmo para quem não tem vivência religiosa institucional, a Páscoa pode lembrar a constante renovação à nossa volta. Que significa oportunidade de escolha, bela e assustadora. A liberdade é assustadora por ser inquietante. Jovens, nós a buscamos como a grande utopia. Eventualmente aprendemos que mais cômodo seria nem ter de optar. Mas aí seríamos pedra, bicho ou planta – e somos humanos. Anjos montados em porcos, já escrevi aqui, segundo Tomás de Aquino. O anjo quer levitar, o porco refocila na mediocridade e na mesmice. Uma boa combinação de ambos daria uma pessoa interessante. Que raridade. Minha Páscoa mais recente foi deixar a casa na qual vivi por mais de trinta anos. O espanto me acompanhou como um coro grego e trágico: – Você está doida, não vai agüentar, vai se arrepender, a sua casa, o seu passado, as árvores que você mesma plantou, seu chão... Não sou uma macieira, uma figueira com raízes irredutíveis – aí seria ficar ou morrer. Aprendi que vivemos em ciclos, que os melhores ciclos se encerram e, se foram bons, acabam com doçura, permitindo que novos se abram com alegria. Se foram amargos, deixam um sabor igual. O ciclo da antiga casa foi longo e bom, nem sempre tranqüilo: ali fui feliz, infeliz, animada ou reflexiva, para lá levei filhos pequenos, ali nasceram novas crianças da família. No seu aconchego reinaram beleza e ternura, enfermidade e morte, inquietação, afeto e entendimento, todas as vicissitudes humanas. Ultimamente ela me dava secretos sinais de estar-se fechando seu tempo, ao menos para mim. Se fosse para chorar perdas, eu deveria ficar onde estava até o fim dos tempos, do meu tempo. Por terem sido boas, a vida e a casa me permitiram mudar com susto, mas com entusiasmo. Quem nela morar agora terá, se for capaz de perceber, um clima amoroso para respirar, um ar vital, sem arrependimentos nem queixas. Eu, não longe dali, contemplo uma paisagem vasta e tranqüila, cada manhã um segredo se exibindo ao meu olhar curioso. Minha Páscoa pessoal: que, neste novo lugar de meus amores, os que me visitam, ainda que através de meus textos, possam saborear os ensinamentos silenciosos que a natureza me oferece todas as manhãs, quando abro as cortinas e ela me envia sinais da transformação que é a nossa marca. Nunca fui boa aluna, nem aprendo com facilidade, mas estou atenta e aberta. Um dia eu aprendo. Lya Luft é escritora

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