sábado, 6 de dezembro de 2008

26ª Crônica de Lya luft para "Revista Veja"em 23/03/2005

Ponto de vista: Lya Luft Machos e fêmeas "A solução do conflito entre homem e mulher não reside nas teorias nem nas disputas de poder, mas no afeto que implica respeito e ternura, que sobrepuja paradoxos e lança pontes entre contrários" O mês dito "da mulher" está quase terminando. Trouxe e levará consigo a insistência nas velhas frases e chavões sobre a "liberdade" da mulher atual. Que é pseudoliberdade, por ser antes responsabilidade e assombro diante de possibilidades apenas reconhecidas, alguma irritação ou divertimento com a vaga condescendência masculina... e tantas coisas mais. Ilustração Atomic Studio Nas palestras, a incansável pergunta: "A senhora acha que os homens estão assustados com a nova mulher?". Muitas vezes, penso, devem se decepcionar com a resposta: "Os mais bobos estão assustados, os mais inteligentes estão interessados". O conflito é existencial e atávico. Vem das cavernas, quando o macho precisava depositar sua semente no maior número possível de fêmeas jovens e saudáveis, e a fêmea devia tratar bem o seu grandalhão para que ele executasse a contento suas tarefas em favor da espécie. Além disso, a dama peluda precisava cuidar das crias na caverna... pela mesma razão. Não creio que naqueles tempos meio toscos se pensasse a respeito de papéis e conflito de gêneros, nem que se cultivassem preconceitos, nem que houvesse todo um comércio de idéias voltado para uma política real ou farsista no interessantíssimo terreno do masculino/feminino, onde ninguém se entende, mas no qual para sempre se deseja e busca. Talvez a questão básica seja nosso (das mulheres) medo de solidão, na ilusão de que, com amante, namorado, marido, teremos resolvido o drama ontológico: o que somos, quanto valemos, o que significa esta vida? Antes de sermos dois, temos de viver a solidão essencial do ser humano com o que ela tem de bom porque nos deixa mais lúcidos. Se conseguirmos viver razoavelmente como um só, livres de protetores ou apêndices, sem ressentimento nem rancor ou queixa, entendendo essa condição fundamental nossa, então poderemos nos abrir para o outro. Sendo dois, viveremos em dois, porém em muitas coisas como um só. Sem romper privacidade e mistério, sem esmagar ou acorrentar, sem cobrar ou esperar do outro a resolução de nossos problemas, numa vida dividida que pode ser muito mais rica, ainda que nos imponha tantas condições. A solução do conflito entre homem e mulher não reside nas teorias nem nas disputas de poder, mas no afeto que implica respeito e ternura, que sobrepuja paradoxos e lança pontes entre contrários às vezes hostis. Mais do que deslumbramento, viagens, restaurantes caros, competência, o carro do ano, o marido poderoso ou a mulher de capa de revista, os filhos sem mácula e um cotidiano fácil, é o afeto que faz a vida valer a pena, isto é, nos faz sentir que estamos vivos. Um de meus projetos de trabalho é um pequeno ensaio sobre esse conflito e essa condição. O título, ao menos provisório, é Macho & Fêmea: Glória e Frustração. O subtítulo, se houver, poderá ser uma brincadeira do tipo: "Se não combinamos, por que nos procuramos?". Resumindo, no ensaio afirmo que o bom Dia da Mulher será aquele que for igualmente o do homem: quando tivermos consciência de que estamos juntos no mesmo barco e de que cabe a todos nós superar velhos e tolos medos e preconceitos. Assim talvez sejamos mais cúmplices, parceiros, amantes e amigos. Por enquanto, exceto em alguns casos, estamos no terreno da transição, no eterno processo de nos tornarmos mais humanos. Lya Luft é escritora

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