sábado, 6 de dezembro de 2008

37ª Crônica escrita por Lya Luft para "Revista Veja"em 24/08/2005

Ponto de vista: Lya Luft Meu país é uma fênix "Não nos iludamos com alguns números da economia nem com os sorrisos da elite do poder. Estamos por baixo, e, se não aproveitarmos a ocasião para graves mudanças, seremos o subpovo de um subpaís, digno de piedade" Enjoei. Cansei. As palavras se tornam repetitivas, a esperança sofre um ataque de anemia, o termo "indignação" anda mal-usado e, como tudo o que se malbarata, perde o valor real. O exercício do poder exige um sólido alicerce humano e cultural, grande dose de humildade, realismo, experiência e visão de mundo – para que se possam pronunciar de boca limpa termos como "ética". O barco afunda: alguns ratos já foram lançados na água, outros se agarram ao que sobrou com dentes, patinhas e longo rabo. Adianta ranger os dentes, vale a pena se expor, não se esgotou o velho tema da renovação e da busca de honradez? Os que foram sinceros curvam-se ao peso da omissão: podíamos ignorar tudo isso? Os honrados, revendo conceitos de uma vida inteira, questionam-se dolorosamente. Os cínicos usam da velha arrogância ou fingem nada saber, e os covardes se dissimulam atrás de desculpas escandalosas. Quando esta coluna for lida, estarei, ironia do destino, no berço de boa parte de nossa cultura ocidental e da democracia: a Grécia. Preferiria escrever sobre as Ilhas Gregas, porém o pano de fundo de minhas frases acabaria sendo invariavelmente a teia de malfeitos que de momento constrange o meu país, coisa inimaginável para o cidadão comum, que se esfalfa para manter uma vida digna. Ilustração Atômica Studio O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma democracia menos infestada pela corrupção. A turma dos panos quentes acorre solícita, porém band-aid não resolve doença tão grave e espalhada. Quando a ferida explodiu, eram tantos os tumores e tantos os atingidos que quase não conseguimos respirar – nós que vivemos do suor do nosso trabalho, nós que pagamos as contas com dificuldade e os impostos com indignação, nós que estamos quase paralisados por juros absurdos e estímulo pífio, nós que acreditamos neste país mas somos forçados a desacreditar de boa parte dos que o comandam. Nós, desmoralizados pelas mentiras do bando que assinava sem ler, fazia reuniões sem ver, viajava sem saber, negociava a vida do seu país como se fosse um objeto qualquer, prevaricava sem se dar conta, e agora experimenta todas as máscaras disponíveis enquanto aponta o dedo para os outros: "Ele também fez xixi na calça, ele é pior que eu!". Nas coxias procura-se (ou procura-se ainda ocultar) o responsável: quem esteve por trás de tudo isso? Que pessoa, grupo, entidade manejava os cordéis, enganava e intimidava todo mundo e, covarde criminoso, não mostra o rosto? Quem assassinou tão meticulosamente a nossa confiança? Que surpresa malévola nos aguarda a cada dia? O fio da meada se desenrola cada vez mais longo, mais complicado e sombrio, mesmo para quem gostaria de fechar os olhos e morrer negando a traição: "Eu posso explicar. Não é o que parece". Não nos iludamos com alguns números da nossa economia nem com os sorrisos da elite do poder. Estamos por baixo, estamos naufragando, e, se não aproveitarmos a ocasião para graves mudanças, seremos o subpovo de um subpaís, digno de piedade. A desculpa geral foi, até há poucos dias, que este país é assim ou todos são, as leis são assim, as condições são assim, isso se faz há muito tempo. O homem decente estava quase sendo acusado de incomodar, marchando contra o passo universal (ou nacional). De um lado, receio uma caça às bruxas, que joga na fogueira inocentes junto com os culpados; de outro, temo uma varredura generalizada para debaixo dos tapetes, com o sacrifício de alguns bodes expiatórios para nos fazer crer que tudo está resolvido. Apesar da ameaça da descrença que me ronda, preciso esperar que ao fim e ao cabo a vergonha não tenha passado de moda inteiramente. Talvez a verdade enfrentada de peito aberto nos devolva a confiança, e a nossa alma brasileira habite um país com narizes menos compridos, memórias menos lesadas, bandidagem presa ou expulsa e esperança ainda viva. Podem-se então estabelecer novas regras e soprar novos ares, sem palavrório falso nem idealismo oco. É possível que a esperança e o otimismo ainda tenham espaço por aqui, e o Brasil seja mesmo uma fênix que há de renascer mais forte desta fogueira das vergonhas. A gente espera que sim. Lya Luft é escritora

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