sábado, 6 de dezembro de 2008

38ª Crônica escrita por Lya Luft para "Revista Veja" em 07/09/2005

Ponto de vista: Lya Luft Falar, calar "Ando cansada de frases, mas elas são a arma que me resta, a ferramenta com que nasci, o recurso que o destino colocou a meu dispor, mesmo quando as emoções se cansam" Hoje eu falo de silêncio. Eu, que amo as palavras, hoje fico nos espaços brancos e nas entrelinhas. Fico ausente, estou ausente embora de longe siga pelo milagre da tecnologia tudo o que acontece onde me lêem neste instante. Ausente-presente como tantas vezes tantas pessoas. Nas histórias que relato ou invento, hoje não me interessam tanto as tramas e os personagens: somos todos sombras que andam de um lado para outro, aparecem e desaparecem em quartos, corredores, jardins. Caem de escadas, jogam-se no poço, naufragam como rostos ou ratos. A mim seduzem palavras e silêncios, e jeitos de olhar. O formato de uma boca melancólica, ou o baixar de uma pálpebra que esconde o desejo de morrer ou de matar, ódio ou desamparo, hipocrisia, ah, o olhar sorrateiro, o estrábico olhar dos mentirosos. Ilustração Atômica Studio A mim interessam as coisas que normalmente ninguém valoriza. Porque o real está no escondido. Por isso escrevo: para esconjurar o avesso das coisas e da vida, de onde nos vem o medo, que impulsiona como a esperança. Nas relações amorosas, sou fascinada pela fração de segundo, o lapso mínimo em que os olhares se desencontram e a palavra que podia ter sido pronunciada se recolhe por pusilanimidade, egoísmo ou autocompaixão. E a cumplicidade se rompe e a gente se sente sozinha. O caminho do desencontro é ladrilhado de silêncios, quando se devia falar, e de palavras quando o melhor teria sido ficar calado: e a gente sabia, ah, sim, sabia. Pior: é ladrilhado de gestos que não foram feitos quando o outro tanto precisava. E no silêncio o peso da omissão, cumplicidade com o erro, se agiganta. • • • Tenho falado muito em minha vida, tenho escrito talvez demais. Nem sempre acerto o tom, nem sempre encontro as palavras, eventualmente magôo a quem amo e aliso a quem desejava censurar. Palavras são animais esquivos, ora belos, ora mortais. Ninguém os domestica de verdade, ninguém consegue fugir ao seu poder. Mas nem sempre sabemos o poder que elas têm e concedem. Povos inteiros são iludidos com palavras grandiosas cujo alicerce era areia movediça; pessoas, famílias, sofrem pela palavra certa que não veio quando era esperada, ou chegou e estava vazia de conteúdo. Ainda acredito que o ser humano não é essencialmente burro nem perverso, e isso inclui governos e autoridades. Mas perturba-me o que andam fazendo conosco: não temos poder, estamos ameaçados e desinformados do que se passava e se passa, nossos ouvidos são curtos para a vastidão dos bastidores com cenários acumulados, tudo falso, tudo papelão e tinta e meandros que nem sonhamos. Ando cansada de frases, mas elas são a arma que me resta, a ferramenta com que nasci, o recurso que o destino colocou a meu dispor, mesmo quando as emoções se cansam. Mas não encontro a palavra certa nem o silêncio adequado para falar, neste momento, nesta folha de papel, longe que estou dos acontecimentos da terra que escolho todos os dias para viver. Valem pensamentos? Pensamentos valem, cheios do desejo de que a gente não seja descartável, nossa história não se anule e a covardia não impeça a verdade: aquela por trás das palavras ocas e dos silêncios sorrateiros. Que os pensamentos bons e as idéias saudáveis nos levem a dar em conjunto um grande grito transformador: Assim a gente não quer mais!!!!!!!!!!!!! Lya Luft é escritora

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