sábado, 6 de dezembro de 2008

44ªCrônica escrita por Lya Luft para "Revista Veja" em 30/11/2005

Ponto de vista: Lya Luft Em outras palavras "Palavras se desgastam feito pedras roladas em fundo de rio. No silêncio escutamos nossos próprios desejos e carências, e os dos outros" Neste momento escrevo um novo livro de ensaios, na linha de O Rio do Meio e Perdas & Ganhos, tratando do silêncio: o silêncio bom de curtir a natureza ou fazer descobertas transformadoras em nosso próprio interior; o silêncio belo da contemplação da arte ou de um rosto amado; o silêncio mau das famílias nas quais não se respeita o outro; o silêncio amargo dos casais marcados por mágoa e hostilidade; o silêncio humilhante dos locais de trabalho onde a competitividade é cruel; o silêncio perverso da mentira pública, quando culpados enveredam pela trilha indigna da negação. Falando em silêncio devo falar em palavras, pois entre eles ocorre um jogo singular: calar e falar são complementares, como bons amantes. Ilustração Atômica Studio Silêncios são móveis: ora se adensam em comunicações amorosas, ora se levantam como barreiras de lanças espetadas para agredir. Palavras se desgastam feito pedras roladas em fundo de rio: o que deveria celebrar a verdade se rebaixa em mentiras; o que era belo acaba na lata de lixo dos insultos. O que pode separar agora liga, o que deveria significar harmonia pode maltratar. Como a tão malbaratada palavra "ética", muito vocábulo perde seu sentido quando envereda por trilhas falsas. "Ética" designava comportamento, ou conjunto de regras, em geral não escritas, que ditavam esse comportamento. Vivia-se a ética nos tribunais, entre parlamentares, entre países amigos ou adversários, e também nas relações cotidianas entre pessoas. O termo devia ser comum entre nós, como água e pão. Comportamentos éticos ou não éticos configuram nosso dia-a-dia na rua, na praia, no trabalho, a começar pela família – onde aprendemos alguns conceitos talvez nunca verbalizados mas introjetados, que passam a fazer parte de nós. Mulheres traídas, homens pouco amados, pais arrogantes e brutais ou eternamente críticos (também se bate com palavras), mães amargas ou obsessivamente controladoras, patrões gananciosos, funcionários insatisfeitos. Todas as formas de desrespeito expresso ou subliminar tendem a reproduzir atitudes semelhantes. E os conceitos, coração das palavras, vão-se transformando nesse campo de batalha. Lançar uma palavra aos quatro ventos como se entendêssemos do que se trata não quer dizer que a gente viva segundo ela. A ética, por exemplo, tem sido expulsa de muitos dos nossos cenários atuais, em que é mais citada do que vivida. Há de nos contemplar, consternada, a pobre senhora: não do Olimpo dos deuses inatingíveis, mas nas esquinas da nossa mais simples humanidade, onde a abandonamos em troca de comportamentos irracionais, corruptos ou boçais, desrespeitosos ou grotescos, segundo o jeito e a vivência de cada um. Falo de palavras, mas onde entra aqui o silêncio? Nesta fase do agressivo e do grosseiro, que muitas vezes a gente sublima com algum bom humor, temos dificuldade em lidar com ele, que retumba no vazio do nosso ralo interior. Silêncio e sossego são difíceis de curtir: ah, a música ao vivo, a praia com alto-falantes, a ginástica dirigida, os brinquedos comandados, a diversão atordoante em casa, no clube, no mar – tantas coisas que, se as criticarmos, correremos o risco de parecer antipáticos, eu sei. Mas é neles que nos humanizamos mais. No silêncio escutamos nossos próprios desejos e carências, e os das outras pessoas; nele podemos saborear novas formas de alegria e de convívio; nele aprendemos até a apreciar mais as palavras, pois só no silêncio se abrem os verdadeiros diálogos. Com verdade, com dignidade, com alguma beleza, exercendo a nossa humanidade menos rasteira. Ele é necessário para escutar a chuva que chega sobre árvores e telhados: doce como um colo de mãe, reconfortante como os passos da pessoa amada no corredor. A gente vive de maneira minimamente ética (pode ser apenas educada) a cada dia, e ainda percebe o rumor da chuva nas árvores, ou da consciência falando para o coração atento? Lya Luft é escritora

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