domingo, 7 de dezembro de 2008

67ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 01/11/2006

Ponto de vista: Lya Luft Ilusões, a casa não é sua "A gente brinca de eleições, sem tempo para coisas menos importantes. Vamos na onda. Entrem, ilusões, sintam-se em casa" Um jornalista me descreve como "otimista sem ilusões": achei a definição genial. Sem nenhum otimismo, deveríamos nos matar. Por outro lado, ilusões exageradas são perigosas. Nós, aqui e agora, devemos deixá-las de lado e enfrentar a responsabilidade de nossa escolha fundamental com relação ao país, ao estado e a nós mesmos. Para que não sobrevenham tempos piores, pois estes já são duros. Não recebemos explicações convincentes para tudo o que observamos e nos constrange, fatos que mereceriam um momento de reflexão drástico e profundo. A gente brinca de eleições, sem tempo para coisas menos importantes. Vamos na onda. Entrem, ilusões, sintam-se em casa, dizemos. Logo as promessas começarão a desabar do modo como prevêem os que permaneceram lúcidos. As bondades que jorram de bolsas abertas (as nossas, indiretamente) ou de fontes enigmáticas começarão a cobrar juros diabólicos: nós, criaturas comuns deste país, pagaremos a conta. Ilustração Atômica Studio Nada tenho de pessoal contra candidato algum, e nada do que escrevo tem cunho ofensivo. São meras constatações. Uma política de interesses e alianças bizarras, partidos descaracterizados e posicionamentos de fachada me inquieta. Meu país estar perto do Haiti, em matéria de atraso, tendo caído para o 75º lugar na liberdade de imprensa, me estarrece. A falta de projetos reais, as inaugurações de cenário de papelão, as estradas infernais, os prédios públicos (como hospitais e universidades) deteriorados, nossa juventude com péssimos modelos, os adultos sem horizontes, a pobreza enganada ou comprada com pouco dinheiro em lugar de empregos, doentes desesperados e médicos consternados nos serviços de saúde pública. Tudo isso me assombra. Ardentemente espero que não acabemos numa grande festa inicial, pensando estar livres dos chatos que exigem a famosa faxina ética, para logo nos perdermos num caminho de arrependimento tardio. Pois nossa escolha nos será cobrada, a nossos filhos e netos, por muito tempo, caso a gente esteja entretido ou fragilizado demais para avaliar bem o que fazemos, e por que o fazemos. Na condição de alguém que ama este país onde nasceu, em cuja vida cotidiana se espelham as ações dos que administram a nação e a servem, é que me pergunto: Afinal, que povo somos? Uma nação folclórica e atrasada? Um povo humilde e sofredor que se contenta com muito pouco, ou gente alienada que não enxerga além da borda do prato? Um povo fissurado no osso individual que engana a fome, ou na fútil ilusão de estabilidade? Um povo que escolhe ignorar os desmandos, a impunidade e a estagnação que contaminam a nossa pátria e não deixam dormir os que ainda pensam? Espero que o resultado de nossa escolha nestes dias revele o contrário: uma nação que pensa e escolhe com determinação, uma gente pacífica mas firme, não arrogante, mas altiva e capaz. Com várias gerações de antepassados, lutei do jeito que podia para que este fosse um país onde a gente se orgulha de viver, onde os líderes são exemplos, os bens públicos são administrados com clareza e habilidade, a cultura floresce, a saúde é para todos, a Justiça funciona e a esperança viceja. Não lutei com armas concretas, pois creio na paz, e minha vocação de Joana d'Arc é pífia. Não dei e nunca tive dinheiro para suborno ou agrado. Paguei, muitas vezes com angústia, meus duros impostos, ah, sim. Como a maior parte das pessoas, lutei numa vida de trabalho e decência, e usei as únicas armas que sei manejar: a esperança e as palavras. Com elas escrevo esta coluna, partilhando com os leitores minhas inquietações, receios e encantamentos, ou, como hoje, tentando ver como a gente se livra de ilusões que enganam e atordoam. Lya Luft é escritora

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