domingo, 7 de dezembro de 2008

68ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 15/11/2006

Ponto de vista: Lya Luft Mulheres & poder "Neste momento de tanta expectativa, mulheres assumem o governo de três estados: eu as imagino trabalhando duro, sem enganar nem fingir; rigorosas nas questões éticas, reconstruindo nossa abalada auto-estima" Acho meio triste o espanto provocado por aquilo que as mulheres conquistam ou pelo que lhes acontece de bom, pois isso me parece apenas natural. Não deveria ser inusitado mulher administrar sua vida (na medida em que se administra qualquer coisa nesse terreno...), ser parceira do seu homem em vez de dissimulada inimiga, ser apoio e alegria dos filhos em lugar de complicador, ser, como o homem, uma boa profissional se for a sua escolha. Mas sua saída da relativa sombra ainda causa perplexidade: como reagirão os homens a essa "nova mulher" (termo de gosto duvidoso)? Acho que os bobos se assustam; os interessantes estão encantados com essa parceira. Que mulher haveria de querer parceria com alguém do primeiro tipo? Ilustração Atomica Studio Há quem duvide de que nem todas conhecemos a opressão masculina. Homem grosseiro, frio ou sarcástico: não conheci isso na figura de meu pai na infância nem conviveria com isso na figura de nenhum companheiro quando adulta. Fui uma criança rebelde, de uma maneira dramaticamente inocente para os padrões de hoje, mas nunca me senti menos amada. Se uma coisa aprendi com meu pai, foi ter dignidade e respeito por mim mesma. Em um de meus livros, fiz-lhe a dedicatória honesta: "A meu pai, Arthur, para quem eu não era só uma criança: era uma pessoa". Não encontrei maior elogio para aquele a quem tanto devo. Por isso talvez, apesar dos medos, fragilidades, carências, mil imperfeições, não precisei cultivar ressentimentos. Muitas mulheres não tiveram escolha: foram oprimidas e massacradas, sem oportunidade de crescer e florescer como seres humanos; outras se acomodaram e, mesmo tendo saída e recursos, optaram por permanecer nas areias movediças de uma vida frustrante. O resultado explodiria mais tarde, na forma de autovitimização, eternas cobranças, amargura. É um tema muito interessante esse, de como as mulheres fazem uso do poder que hoje assumem em tantos departamentos da sociedade. Foram educadas para doçura e inaparência, incompletas se não avalizadas por um homem, com medo de parecer inteligentes e fortes, mais ainda de ter dinheiro – pois correriam o risco de ficar sozinhas. Para muitas isso pode parecer anedótico: para a grande maioria, continua a ser um dilema. Mas cada vez mais mulheres se afirmam neste mundo, em tanta coisa medíocre e lamentável. Nem ao menos é novidade: na Idade Média mulheres geriam os feudos enquanto os maridos saíam para as Cruzadas, organizavam sindicatos de tecelãs. Davam aulas de teologia e filosofia em universidades européias; doutoras da Igreja estudavam e escreviam em seus conventos; há menos tempo, mulheres cultas recebiam em seus salões grandes escritores, músicos, pintores, influenciavam seu tempo, escreviam e publicavam livros. Houve porém ondas de obscurecimento, quando parece que eram todas um cortejo vestido de preto e de tragédia, escondidas nos quartos penumbrosos ou nas cozinhas abafadas. Estamos num momento de nova iluminação. Podemos e devemos nos pensar primeiro como pessoas, depois como homens ou mulheres: grande transformação. E talvez seja preciso rever também alguns conceitos. Um deles é "liberdade", lembrando que toda parceria, sobretudo amorosa, é um dificílimo equilíbrio entre adaptação e firmeza, gentileza e preservação da auto-estima, cuidado e discrição, ternura e respeito. Para os homens, não amar pensando na casa arrumada, na refeição pronta, nas crianças atendidas. Para as mulheres, amar sem visualizar o cartão de crédito, o status de amante ou casada, muito menos algum passaporte para a chamada felicidade. Difícil, eu sei. Viver é difícil. Mas quantos momentos de ternura, de descobertas, de glória, no meio das agruras normais de uma vida normal a dois. Neste momento de nosso país, de tanta expectativa sobre os rumos que serão tomados, de como vão se realizar (ou não) os anseios de tanta gente, de como o Brasil vai se portar e se manter, mulheres revelam cada vez mais personalidade e força. Assumem, por exemplo, o governo de três estados: eu as imagino trabalhando duro, sem enganar nem fingir; rigorosas nas questões éticas; reconstruindo nossa abalada auto-estima – sem se deslumbrar nem se achar um messias de saias, porque não precisam disso. Elas têm mais o que fazer: perseguem interesses melhores do que os de Narciso. No misto de curiosidade, receio e generalizada torcida para que a gente avance, progrida e se firme, esse assunto faz parte do positivo. E da esperança nossa de cada dia. Lya Luft é escritora

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