domingo, 7 de dezembro de 2008

70ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 13/12/2006

Inevitáveis transições "Nem todas as perdas são vida jogada fora. Algumas são necessárias" Não queremos perder nada e, se pudéssemos, teríamos amarradas em nós todas as coisas positivas, os momentos felizes e as pessoas amadas – levando-as conosco feito um tesouro sufocante, pois o que é bom, quando agarrado com unhas e dentes, aprisiona. Viver é perder, viver é ganhar, e, quando escrevi um pequeno ensaio chamado Perdas & Ganhos, eu falava nisso. Embora no mais recente, Em Outras Palavras, eu mais uma vez deixe a ficção reunindo crônicas sobre os assuntos mais gerais, alguém comentou que escrevo sempre sobre as mesmas coisas: pode ser. Todo artista tem seus temas viscerais, dos quais não quer se livrar. Ao contrário, ele os repete, exorciza e transfigura de muitos modos, não repetindo por pobreza, mas intensificando para melhor expressar. Ilustração Atômica Studio Porque é assim que se faz. Ou é assim que eu faço, e falo da vida. Quando falo da morte, também falo da vida. Quando falo de vida e morte, falo em relações amorosas – ou rancorosas. Quando escrevo sobre palavras ou linguagem, escrevo sobre silêncio e incomunicabilidade. Esta é, aliás, uma das marcas do ser humano: não saber se comunicar. Quanta dor, quanto mal-entendido, quanta calúnia, quanto abandono e incompreensão devidos a palavras e emoções mal expressas, mal ouvidas, mal sentidas, insuficientes ou excessivas. Quanta perda, ou melhor: quanto desperdício. Mas nem todas as perdas são vida jogada fora: algumas são necessárias. É preciso saber alternar as perdas com novos ganhos. Alguns deles, aliás, dependem da anterior perda. Somos contraditórios como tudo o mais. Trabalho de momento em dois projetos, um ensaio sobre silêncio e incomunicabilidade e um livro de contos. Percebo, porém, nessa singular autonomia que a obra tem em relação ao autor, que talvez ambos acabem se fundindo num romance. Muitas vezes foi assim, muitas vezes será. O artista precisa de boa escuta: seguir o sopro do vento interior, que não é o dos elogios, críticas, vendagem ou fracasso, mas acontece num outro registro, que só ele percebe. É dele, ninguém mais tem acesso – nem deve ter. Nesse novo trabalho ainda indefinido, ainda emergindo das águas profundas, escrevo sobre relacionamentos deteriorados, ou delicados amores. Sobre a nossa dificuldade em ser mais felizes, sobre a luta eterna entre pulsão de alegria e desejo de término e morte. Por erro de momento e cálculo, podemos perder tempo e vida – mas podemos ter novos ganhos, se não formos nem tolos nem rígidos demais, se o vício da autoflagelação não superar o de realização. Podemos ter um amor bom porque perdemos o que estava distorcido e ruim. Podemos ter uma vida nova porque superamos a outra, que era tormentosa e falsa. Podemos ter novo projeto de trabalho porque o outro não nos satisfazia mais. Isso é que chamo de arrojo, audácia positiva, salvação. Repito, muitas coisas é preciso perder. É preciso saber perder. A criança tem de perder de certa forma a mãe para a reconquistar em outra maneira, não mais a mãe todo-poderosa, sem a qual não sobrevivemos nos primeiros anos, mas a que estimula e concilia, que empurra para cima e para diante, nos respeita no que somos e podemos fazer – e assim também nos perde um pouco, para nos ganhar melhor. Quando adultos, temos de ratificar essa perda, tornando-nos mais autônomos, menos rebeldes porque mais seguros, mais amorosos talvez porque mais tranqüilos. As naturais implicâncias entre pais e filhos, sobretudo mães e filhos, cedem lugar a uma nova camaradagem, mais alegria e apoio mútuos. Só quem não quiser botar rédeas e algemas poderá – sabendo perder – ganhar parceiro ou parceira carinhosos e alegres, em lugar de relações que parecem câmaras de tortura óbvias ou, pior, sutis. O que é esse perder? É, de novo, olhar o outro, abrir-lhe os necessários espaços, permitir que o bom senso fale mais alto que o egoísmo. E, se algum dia houver uma real separação, nada mais digno, mais respeitável, do que deixar o outro ir, preservando os momentos bons que houve, para que não se envenene isso que um dia foi amor e compromisso mútuo. Se não formos demasiado neuróticos, os belos momentos estarão em nós como fundamento de uma nova experiência. O que não podemos perder de verdade é a capacidade de contemplar e curtir a beleza e os afetos, de manter a compostura, o orgulho e a esperança. Se os deuses nos ajudarem a tanto, porque às vezes isso é dura tarefa.

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