domingo, 7 de dezembro de 2008

69ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 29/11/2006

Ponto de vista: Lya Luft Sem ritmo nem afinação "Caminhamos com passos atrapalhados num samba de incerto destino" Como cidadãos deste país, devemos dedicar alguns pensamentos a quem comanda nosso destino cívico: o novo Congresso, onde vão se produzir grandes consensos – o maior deles, o silêncio sobre nossos mais candentes problemas. Como o fato de que nosso índice de desenvolvimento humano (IDH) desceu mais uma vez: fomos para a 69ª posição, perdendo para vizinhos como Uruguai (43ª), Chile (38ª) e Argentina (36ª). Segundo estudos do Banco Mundial, entre 175 países é no Brasil que se gasta mais tempo para cumprir obrigações fiscais: 2.600 horas por ano por empresa, 800% a mais do que a média dos outros países. Somos campeões na desigualdade social e um dos países que menos crescem no mundo, perdendo só para o Haiti, na América Latina. Embora a equipe do governo trabalhe para garantir o crescimento de 5% do PIB a partir de 2007, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento, estima uma expansão dessa magnitude somente para 2017. O estudo estava pronto antes das eleições, mas só agora vem sendo divulgado. Comentário de uma alta autoridade: "Ora, o Ipea é só um órgão de estudos..." Ilustração Atomica Studio Nosso dinheiro duramente ganho (quando temos emprego) vai sobretudo para os impostos, que comem 113 dias de trabalho da classe média, a qual, embora seja a menor parcela da população, é responsável por 60% da arrecadação. O que resta entra no ralo dos serviços que o Estado deveria fornecer de boa qualidade, mas que nós pagamos: gastos com saúde, educação, segurança, previdência privada e pedágios devoraram 31% dos ganhos da tão atacada classe média em 2006. Nós, os professores, bancários, jornalistas, donas-de-casa, balconistas, secretárias, motoristas, que mantemos este país andando. Na corrupção, segue animado o baile de máscaras: ninguém fornece dados que permitam processar responsáveis pelo dossiê Cuiabá. Há um assunto de cartilhas que mal consegue emergir; é logo abafado. Sem falar no mensalão, nos sanguessugas, no dinheiro mal aplicado de muitas ONGs, nos escândalos do INSS e outros. Naturalmente o Brasil só podia ter piorado nesse ranking: segundo a Transparência Internacional, passamos para o septuagésimo lugar entre os países mais corruptos, acima apenas da Argentina, do Paraguai, da Venezuela e do Equador. Com o país caindo aos pedaços, aviões começaram a fazer o mesmo, ou quase. Nota atualíssima nos diz que só neste ano houve iminência de três colisões nos céus brasileiros – fato gravíssimo! O que está acontecendo em aeroportos e nos ares é o inimaginável fruto do descaso, da desorganização, da falta de autoridade e consenso, brincando com vidas humanas: a próxima pode ser a minha, a sua, a de pessoas que amamos. O governo reduziu gastos com a segurança aérea e vai investir só 40% do necessário em infra-estrutura nesse setor. Sofrendo pela falta de preparo (só 3% falam inglês elementar), treinamento e atividade mais racionalizada, os controladores de vôo afirmam que trabalhar nas condições em que trabalham é um pesadelo. Tendo diminuído também os gastos em educação, que deveria ser, junto com saúde e segurança, nossa prioridade absoluta, descemos mais um lance dessa ladeira íngreme. Aumenta o número de jovens chegando ao mercado de trabalho sem qualificação, portanto desempregados. Da população entre 15 e 25 anos, quase 40% não completaram nem o ensino fundamental. Nem vão concluir: o número de jovens assassinados é maior do que nas guerras. Nunca vimos tanta gente morando nas ruas e praças, tantas crianças e jovens pedintes, tantos drogados criminosos, jamais a insegurança grassou de tal maneira em nossas cidades e no campo, nunca fomos tão claramente reféns da violência quase descontrolada. O Brasil também atrai menos investimentos estrangeiros, e caiu do sexto para o 13º lugar na lista dos que mais receberam projetos. A falta de investimento estrangeiro no Brasil colabora para o desemprego, e o país vai perdendo cada vez mais a corrida da competitividade. Energia elétrica, rodovias, portos, aeroportos, vivem sob a ameaça de apagão geral. A participação da iniciativa privada em obras foi regulamentada neste ano, mas nenhum processo foi concluído: vivemos no reino do papel, como é de fantasia a riqueza que os políticos querem distribuir e ainda nem foi gerada. Quem pode foge, como os imigrantes da Grande São Paulo que começam a retornar às terras de origem, no Norte e no Nordeste: lá, afirmam, podem viver do Bolsa Família. Comentários de uma inesperada catastrofista? Engano: nada do que escrevi acima é meu. Como qualquer alfabetizado pode fazer, colhi frases recentes de nossa imprensa – que precisamos cada vez mais livre, para iluminar nossos passos atrapalhados num samba de incerto destino, sem ritmo nem afinação.

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