domingo, 7 de dezembro de 2008

94ª Crônica escrita por Lya Luft para "Revista Veja" em 07/11/207

Ponto de vista: Lya Luft Paisagem com problemas "Por ser complexa, a vida é interessante: por isso enchem-se os consultórios dos psicanalistas, escrevem os escritores, combatem os soldados" Problemas são privilégio dos humanos. Quem mandou andar ereto, quem mandou pensar? Quem mandou inventar sociedade, trabalho, salário, teorias das mais abstrusas e, ainda por cima, política? Altos e baixos, magros e gordos, belos e feios, pobres e ricos, inteligentes e menos iluminados, problemas sempre teremos: com filho, com cônjuge, com patrão, com funcionários, com o Fisco ou o governo, com amigos ou com a burrice alheia. Nosso envolvimento vai armando uma trama que nos atrapalha e não nos deixa enxergar a claridade ou curtir os não-problemas. Outro dia, depois de uma palestra, um casal me abordou, simpático. Ele pediu: "Eu queria que a senhora escrevesse sobre a necessidade de reavaliar nossos problemas e aliviar a vida. Pois minha mulher", ele a olhou com carinho, não com censura, "vive tão enrolada que pouco tempo resta para a alegria e para nós dois". Ilustração Atômica Studio "Bom", respondi, "isso depende dos problemas". E resolvi escrever este artigo, lembrando o que me disse uma amiga: "Quando a gente está muito atrapalhado, é bom parar e analisar o que sombreia nossa paisagem: são tragédias ou chateações? Na imensa maioria das vezes são apenas chateações". Nunca esqueci essa fabulinha. Quando começo a querer me queixar da vida, penso nela. "Com as perdas só há uma coisa a fazer: perdê-las", escrevi certa vez. Algo parecido ocorre com os problemas. Com eles, só há duas saídas: uma é resolvê-los. Com os insolúveis, o jeito é perceber e aceitar. Duro aprendizado. Depois, relegá-los a um segundo plano, abrindo-se mais para a vida – que é breve, é difícil, e não deixa o bonde passar muitas vezes, ah, não. Um dia, talvez não distante, abriremos os olhos e lá estará o belo e terrível Anjo da Morte, curvando o dedo no gesto irrecusável: "Vim te buscar, pobre humano". Não acho que problemas devam ser ignorados. Frivolidade também mata. Mas há sempre o momento de parar para pensar, ou pensar menos e viver mais. Rever nossas estruturas, internas e externas: O que posso resolver? O que devo esquecer ou superar para que não me sufoque ou me roube a luz de que preciso para enxergar outras coisas, coisas melhores? A vida é dura lida. Por vezes altamente dramática. Aqui e ali, tragédia. Nem sempre podemos desviar os olhos e a alma, nem sempre podemos ignorar e superar, nem sempre podemos resolver. Vitórias são raras. "Do caos nasce a luz" e da derrota pode nascer uma nova pessoa, melhor que a de antes. Mas do caos também pode surgir mais confusão, e da derrota pode resultar um pobre ser esmagado. Assim, dos problemas pode-se fazer uma seleção, em que alguns serão jogados fora. Deletou, acabou-se. Outros ficarão à margem do caminho, dando passagem ao otimismo e à vontade de vida, mas estarão ali, à espreita de um momento de fraqueza para nos assaltar feito bandoleiros. Outros, ainda, necessitam de um longo tempo para que se desmanchem suas raízes no coração que se atormenta. Só que esse tempo não pode ser tão longo quanto a vida nem ocupar demasiado espaço dentro dela, ou desperdiçaremos o que há de melhor na paisagem. Eu mesma, do alto dos meus tantos anos e duras lidas, não consigo resolver ou superar alguns de meus problemas nem ajudar pessoas que amo a se livrar de todos os seus. Às vezes o jeito é dar-se as mãos numa ciranda solidária, esperando que o bom senso vença a perplexidade e reduza nosso sofrimento inútil. Seja como for, por ser complexa, a vida é interessante: por isso enchem-se os consultórios dos psicanalistas, escrevem os escritores, lutam os soldados, roubam os ladrões, enganam os crápulas e brincam, antes de se convencer da dureza dos combates, quase todas as crianças na paisagem em torno. Não brincam as que morrem nos hospitais, fenecem nas ruas, sofrem nos lares violentos ou tristes: são responsabilidade nossa, grandes trapalhões que inventamos esta cultura, esta sociedade, esta injustiça, esta omissão, estas relações e esta vida. Porque a morte, essa não inventamos nós. Diante dela, quase todos os problemas se resolvem, e empalidecem quase todos os dramas. Lya Luft é escritora

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