domingo, 7 de dezembro de 2008

95ª Crônica escrita por Lya Luft para "Revista Veja" em 21/11/2007

vista: Lya Luft Sem retoque ou com retoque? "Gosto de ser otimista, mas não posso perder a visão da realidade, e nela não vejo nada deslumbrante" Ilustração Atômica Studio Detesto o pessimismo e as lamúrias. Mas, às vezes, eu me sinto assim, quando penso um pouco sobre as notícias nossas de todo dia, que apresentam uma realidade em parte coberta por uma pesada maquiagem. Como agir nessa situação bipolar? De um lado, ficamos alucinados e eufóricos, porque a Copa é nossa, as Olimpíadas serão nossas, o petróleo é nosso, a cultura é nossa, a educação e a saúde idem. A Copa é nossa fica ótimo. Desde que signifique atletas mais bem-cuidados, bem alimentados, tendo bons patrocínios e benefícios que durem e perdurem bem depois desse grande evento. Novos estádios e reforma dos já existentes, animação do turismo, hotéis lotados, dinheiro circulando, muitos novos empregos. Tudo bem. Desde que não haja também dinheiro escoando para bolsos indevidos. Temos, por outro lado, um olhar lúcido que percebe que somos atraídos por miragens habilmente construídas. Os cientistas entrevistados sobre a monstruosa jazida de petróleo – que já foi anunciada um ano atrás, sem nenhum alarde – são, no mínimo, discretos: é qua-se uma hipótese ainda a possibilidade de explorar o que fica a uma profundidade nunca antes explorada. Precisaremos inventar novas tecnologias, preparar novos especialistas. Meu velho pai dizia: "Não conte com o ovo antes de a galinha botá-lo". Eis uma verdade eterna. O imenso ovo da nova jazida ainda está no quentinho de sua mãe. Parece que a economia vai bem. Mas o que significa o índice Bovespa para quem ganha salário? A saúde receberá não sei quantos bilhões: quando, como, onde, na realidade real? O que vejo são hospitais pobres e podres, médicos desesperados ou demitidos, doentes atendidos em saguões (ou não atendidos), prateleiras de remédios vazias, consultas de casos graves marcadas para daqui a seis meses, um ano. Essa é a realidade real. A notícia recente de que nosso PIB de 2005 foi maior do que disseram os resultados de então é, no mínimo, suspeita. O PIB era ou não era aquele? Se foi ruim, para nosso conforto, a gente manda recalcular e muda o resultado? Fazemos isso com a maior simplicidade, e meio mundo se regozija. Viva, como estamos bem! Mas vejo escolas vazias por falta de professores (quem ainda quer lecionar ganhando menos do que uma empregada doméstica mediana?), sem luz, sem merenda, sem a menor condição. Boa parte da juventude brasileira está fora da escola, pedindo esmola nas esquinas, servindo de avião para os traficantes, assaltando com armas poderosas na mão ainda infantil. Temos um boom imobiliário. Nunca se anunciaram e construíram tantos edifícios. Vamos voltar ao assunto daqui a dez, vinte anos, quando – como ocorre agora nos Estados Unidos – os compradores não puderem mais pagar as prestações, pois hoje se vende apartamento a um prazo insano. Nada de mais: já nos endividamos por um ano inteiro na festa de Natal, e daí? Gosto de ser otimista. O pessimismo radical merece uma bala na cabeça, fim, acabou-se a chatice. Mas não posso perder a visão da realidade, e nela não vejo nada deslumbrante. É verdade que há coisas boas em curso. Nem todas as descobertas de corrupção foram definitivamente engavetadas, embora ainda não se possa dizer que a impunidade é rara. A revelação de trambiques, trampas e roubalheiras assusta pelo inesperado e pelas dimensões, mas nos dá certo alento. Em boa hora, pois a gente anda cansado de usar o nariz de palhaço e o cenário de papelão. Que os deuses permitam que as autoridades tenham autoridade moral, que os governantes governem para o bem, que o povo não seja usado para melhorar o jardim das delícias alheio. Que, com ordem, se desfrute um progresso verdadeiro, generalizado, seguro e... sem retoques. Lya Luft é escritora

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