sábado, 6 de dezembro de 2008

25ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja" em 09/03/2005

Ponto de vista: Lya Luft Notas sobre cinema "O filme Perto Demais retrata, entre muitos, um aspecto marcante do nosso tempo: a superficialidade e o hedonismo burro com que tantas vezes nos desperdiçamos" Antes que alguém tresleia, explico que não entendo de cinema, não sou cinéfila, não sei citar diretores nem produtores, apenas freqüento cinemas como qualquer mortal. Há filmes que a crítica malha e me agradam, há filmes que a crítica dita sofisticada endeusa e me entediam. Como passo os dias neste computador lidando com reflexão, destino, personagens, tramas, não curto demais, fora desta casa, nada tão hermético que nem o próprio diretor ou roteirista entendem. Dito isso, vou escrever aqui sobre o que mexeu comigo em dois filmes recentes. O primeiro foi Closer, que de "Mais Perto" resolveram traduzir como Perto Demais. Tinham-me falado do filme de várias maneiras: muitas mulheres dizendo que ele mostrava mais uma vez que "homens não prestam, são todos infantis e boçais"; outros, que revelava a diferença abissal entre masculino e feminino – isso me interessou, pois um de meus projetos atuais de trabalho é um pequeno ensaio sobre o assunto fascinante. Atomic Studio Seja como for, assisti sem esperar nem grande decepção nem maior entusiasmo. Ao sair me perguntei: de que, resumidamente, trata esse filme? Perto Demais trata de desencontro e solidão. De incomunicabilidade. De futilidade, de não-entrega. O que menos se aborda ali é amor. Nada vi de diferenças marcantes entre masculino e feminino: ao contrário, todo mundo está com alguém, mas de olho no outro, e tanto faz qual o sexo de quem; saboreando um, espreita o vizinho. Perto Demais retrata, entre muitos, um aspecto marcante do nosso tempo: a superficialidade e o hedonismo burro com que tantas vezes nos desperdiçamos. • • • Menina de Ouro me desagradaria de saída, pois detesto violência, sobretudo física, e nunca entendi como se pode ferir e deixar-se ferir enquanto outros seres humanos em torno torcem como se fossem todos, no ringue e fora dele, animais. Por outro lado, o tema da eutanásia é difícil, duro, e a algumas pessoas toca muito de perto: por exemplo, a quem eventualmente assistiu, ano após ano, à deterioração mental e física de uma pessoa amada, indizível sofrimento. Bom para provocar os falsos moralistas no mundo inteiro. Mas o diretor Clint Eastwood disse numa entrevista que não quis fazer um filme sobre boxe nem sobre eutanásia. Fez um filme sobre a precariedade da vida, e sobre os sentimentos humanos. Para quem escreve sobre eles e sobre família em especial, o filme provocou um mar de reflexões. O treinador, culpado, batendo anos a fio à porta de uma filha rancorosa que lhe devolvia pontualmente as cartas, encontrou na jovem boxeadora alguém que soube valorizá-lo, que precisava dele, e que lhe deu tudo o que a sua filha de sangue negava. Para a moça, solitária e desamada, o velho treinador, fingidamente frio e crítico, foi a família que ela não teve. Ou melhor: tinha, mas antes não existisse, pois era fria, aproveitadora, ridicularizando seus esforços e ignorando seus sentimentos. Mocinha e treinador jogavam pérolas a porcos. A vida lhes deu uma chance de escolher algo mais, na arguta e comovida visão de Clint Eastwood, a quem a passagem do tempo foi extremamente favorável. Os obcecados pela beleza física e pela eterna juventude dirão que ele está enrugado, feioso, torto até – mas que ator. E que diretor. Que abrangência de talentos, pois até da trilha musical ele cuida. Grande filme sobre dois grandes personagens, aparentemente fracassados, mas poderosos na sua generosidade em dar e aceitar amor. Boa sugestão: transformou-se o desperdício em generosa troca. Lya Luft é escritora

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